O Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública pedindo na Justiça que a União e o Estado do Espírito Santo implementem no Sistema Único de Saúde (SUS) ao menos um serviço de referência para a realização do procedimento de interrupção de gravidez nas situações em que o procedimento é permitido por lei.
Na ação, o MPF pede liminarmente que a Justiça obrigue a União e o governo do Estado a darem início, no prazo de 30 dias, ao processo de contratação e nomeação de profissionais nas especialidades necessárias à realização de abortamento após as 22 semanas de gestação, em pelo menos uma unidade hospitalar do estado, preferencialmente na Capital.
Também no prazo de 30 dias, o MPF pede que seja realizada a aquisição dos equipamentos hospitalares necessários à realização de aborto após as 22 semanas de gestação. Além disso, que seja imposto de forma imediata aos réus o dever, previsto em lei, de manter o sigilo em relação aos nomes e todas as informações pessoais e os dados clínicos relativos a mulheres, adolescentes e crianças que procurem acolhimento e atendimento nos serviços públicos de saúde, prestados em território capixaba, voltados para as vítimas de violência sexual, desde a primeira abordagem.
O Ministério Público Federal ainda pede decisão liminar que determine ao Estado a criação de um sistema de regulação específico ou a inclusão no sistema já existente, que garanta o direcionamento imediato de mulheres, adolescentes e crianças que optem pelo abortamento nas hipóteses permitidas em lei, independentemente da idade gestacional, garantindo-lhes o devido sigilo e a celeridade na realização do procedimento.
A Procuradoria pede que a Justiça determine multa no valor mínimo de R$ 5 milhões no caso de não atendimento dos pedidos.
Demandada a União pela reportagem, o ente informou que não foi oficialmente notificado da ação e que se manifestará, oportuna e tecnicamente, nos autos do processo.
Também acionada, a Procuradoria-Geral do Estado informou que ainda não foi oficialmente notificada sobre a referida ação.
Já a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) informou que desde setembro tem tomado medidas para a organização de mais uma porta de serviço de referência para interrupção legal de gravidez, nos casos previstos em lei, no Hospital Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (Himaba), habilitado tanto para realização do aborto legal ou da antecipação do parto. "Com isso, serão três serviços de referência no estado. Para os anos de 2021-2022, a Sesa pretende trabalhar no cumprimento da Portaria Federal Nº 2.282 para que qualquer maternidade que preste serviço público de saúde possa fazer a interrupção legal", disse em nota.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, em 2018 o Brasil registrou 66.041 casos de estupro, o que representa um aumento de 4,1%, em relação ao ano anterior, resultando em cerca de 180 casos por dia. Desse total, 53,8% tinham até 13 anos de idade, ou seja, naquele ano, quatro crianças foram estupradas por hora.
No Espírito Santo, observou-se um estupro a cada 18 horas. Estudos evidenciam que há um enorme índice de subnotificação de violência desse tipo, por diversos fatores, como medo e vergonha, uma vez que 72% dos casos são de vítimas de até 17 anos e cerca de 70% dos agressores são parentes ou pessoas conhecidas da família.
Recentemente, repercutiu em todo o Brasil e até internacionalmente o caso da criança de 10 anos, grávida em decorrência de estupro, no município de São Mateus, a quem foi negada a realização de abortamento no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), em virtude da ausência de profissionais especializados.
Para fazer valer a vontade da vítima e de sua família, a criança, mesmo amparada por autorização judicial para o aborto, precisou ser encaminhada a um hospital no município de Recife (PE), já que não havia profissionais capacitados, nem hospitais com protocolos específicos para o estágio gestacional verificado no caso em todo o Estado do Espírito Santo.
Além do drama sofrido pela criança, o caso revelou para a sociedade capixaba a incapacidade dos serviços públicos de saúde instalados no estado em acolher e, em determinadas hipóteses, oferecer o tratamento adequado às vítimas de violência sexual que optarem pela interrupção da gravidez, destaca a procuradora Regional dos Direitos do Cidadão no ES, Elisandra de Oliveira Olímpio.
Para o MPF, essa situação configura omissão ilegal no dever de prestação de serviços públicos de saúde, que, além disso, pode atingir diretamente os direitos subjetivos das mulheres, adolescentes e crianças vítimas de violência sexual, como se deu no caso narrado. O mero estado de ilegalidade e a inconstitucionalidade do serviço prestado, sem, em um primeiro momento, avaliar os danos infligidos e a infligir na sociedade capixaba, impõe, por si só, a adoção de medidas para correção imediata dos serviços prestados. Não se admite indiferença em relação a demanda social tão sensível, com potencial de atingir futuras vítimas.
Em um Estado laico, a liberdade de culto e de concepções filosóficas não devem guiar o tratamento estatal dispensado às vítimas de violência sexual. Os serviços públicos de saúde e assistência social devem estar em condições de receber as demandas sociais relativas ao aborto em estrita observância à ordem jurídica, elemento impessoal e apartado das concepções parciais da sociedade, apto a conferir uma decisão racional sobre os mais diversos temas, pontua a ação do MPF.
A concepção resultante de ato de violência, destacou o MPF, tem peso determinante, com possíveis efeitos negativos no ânimo psíquico da vítima, não apenas na escolha de parir ou não, como na de prolongar a gestação. A escolha da gestante, nesse particular, concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade, pois interferirá em seu próprio projeto de vida.
Outros valores constitucionais pesam em favor da vítima de violência sexual. A própria alteração do Título VI da Parte Especial do Código Penal, que deixou de adotar a expressão "Crimes Contra os Costumes", para usar "Crimes Contra Liberdade Sexual", aponta que o legislador considerou que a liberdade é valor jurídico a ser considerado nos crimes sexuais, segundo o MPF. O legislador, igualmente, confere relevo à liberdade sexual da mulher entre nas hipóteses de interrupção da gravidez.
Pesa também em favor da vítima de estupro que queira optar pela interrupção da gravidez, o direito à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou ao tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar.
Com informações do Ministério Público Federal (MPF)
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