> >
Mulher agredida em Guarapari: especialistas analisam abordagem de PMs

Mulher agredida em Guarapari: especialistas analisam abordagem de PMs

Profissionais da segurança pública e da saúde avaliam a atuação dos militares com mulher — que foi agredida por um deles — durante apoio a uma equipe do Samu em Guarapari

Publicado em 30 de setembro de 2021 às 10:46

Ícone - Tempo de Leitura min de leitura
Vídeo mostra PM agredindo mulher com socos e joelhadas no ES
Vídeo mostra PM agredindo mulher com socos e joelhada no ES. (Reprodução)

Após a grande repercussão sobre a abordagem da Polícia Militar no atendimento a uma ocorrência em Guarapari, no último sábado (25), especialistas em segurança pública e em saúde mental analisaram a conduta dos agentes. Um vídeo, que viralizou nas redes sociais, mostra um militar dando socos, joelhada e tapa em uma mulher, na presença de outro policial

No registro é possível ver que, mesmo imobilizada no chão, a mulher leva um tapa no rosto. Segundo a PM, os policiais foram dar apoio ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) porque a mulher estava em surto, com comportamento agressivo e seria internada compulsoriamente (contra sua vontade). Nesta quarta-feira (29), a corporação informou que os militares envolvidos no caso foram afastados.

O questionamento que fica, mesmo com a medida de afastamento, é: no caso de serem feitos novos pedidos de apoio, por parte da PM, às instituições de saúde, qual deve ser a abordagem ideal? Qual técnica deve ser adotada? É sempre necessária a adoção da força? Convidados por A Gazeta, especialistas analisaram a atuação dos militares com base nas imagens do vídeo amplamente compartilhado.

PROTOCOLOS DE SEGURANÇA PÚBLICA

Para o coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-consultor do Banco Mundial, de fato existe autorização para que a polícia se utilize da força não apenas contra criminosos, mas também com pessoas que precisam ser contidas, até para que a segurança delas também se mantenha.

PM
"Isso é uma falha", diz coronel da PM-SP José Vicente da Silva Filho sobre abordagem a mulher em Guarapari. (Arquivo Pessoal)

Segundo ele, o esforço de contenção para uma pessoa agitada também é desagradável ao policial e costuma gerar sensação de abuso em quem presencia. "De qualquer forma, os policiais precisam de melhor treinamento para executar imobilização e condução para levar até um local adequado. Isso é uma falha. Existem treinamentos bem feitos neste sentido, como em aviões, para lidar com 'passageiros difíceis', por exemplo, sob efeito de bebida", disse José Vicente.

Aspas de citação

No caso ocorrido em Guarapari é difícil fazer um julgamento a distância. Mas, aparentemente, houve um excesso de força por não terem tido o treinamento adequado, ou seja, aquele que permita rapidamente imobilizar. O treinamento é importante também para a própria segurança do policial, para evitar que ele mesmo seja agredido. De tudo, uma coisa é certa: tapa nunca se dá, não faz parte dos recursos que usamos

José Vicente da Silva Filho
Coronel da reserva da PM-SP
Aspas de citação

Nas palavras do oficial da reserva da PM-SP, o treinamento ideal utiliza técnicas que vêm, por exemplo, das artes marciais. "Aqui em São Paulo os PMs passam por reciclagem anual, mas é comum, em alguns lugares, que os policiais façam um treinamento para ingressar e depois não passem por revisão. É preciso treino, repetição de cada movimento. Outros artefatos também são importantes de serem incorporados, como as pistolas de efeito neuromuscular (como a Taser), cujo disparo dá uma carga de alta voltagem, porém com potencial de dano físico pequeno. Apesar disso, a pessoa não consegue ficar em pé", explicou.

Ele explica que o uso da pistola imobilizadora tem um custo alto, semelhante ao de uma pistola convencional, mas pode ser um instrumento "amigo". "O policial se depara, por vezes, com pessoas difíceis, que se exaltam. Para evitar situações piores, usa-se o Taser por ser um artefato menos letal. Também há o spray de gás pimenta, em que a pessoa fica aturdida com o gás que queima a mucosa e, assim, fazer a imobilização fica mais fácil. Nos Estados Unidos, há outras opções que também poderiam ser avaliadas aqui, como o uso de uma espécie de rede, que enrola a pessoa e imobiliza. É menos problemático do que usar o joelho", acrescentou.

O professor do Mestrado em Segurança Pública da UVV, Henrique Herkenhoff, concorda com José Vicente da Silva Filho. Para ele, é importante estudar esse tipo de incidente, para ver o que pode ser melhorado no treinamento e equipamentos utilizados.

"Examinando os detalhes da ocorrência, uma senhora estaria em um surto psiquiátrico e oferecendo muita resistência. Existem protocolos específicos para essa situação, diferentes de quando se lida com um suspeito, mas não é um treinamento difundido. Também não parece ter sido intenção dos policiais praticar nenhuma violência contra ela, mas é provável que não tenham usado as técnicas corretas", ressaltou Herkenhoff.

O professor também citou a importância do treinamento e uso de equipamentos adequados. "Nas ruas e tendo que lidar com as mais diversas e difíceis situações, o policial nem sempre recebeu um repertório compatível, nem sempre dispõe das ferramentas necessárias, mas não pode ir embora, abandonar a ocorrência. Ele é obrigado a improvisar e, às vezes, o improviso dá errado, a ocorrência sai do controle", ponderou.

"PRIMEIRA RECOMENDAÇÃO É O DIÁLOGO", DIZ PSIQUIATRA

A psiquiatra Letícia Mameri Trés explicou que esse tipo de atendimento exige um treinamento específico. Na avaliação da médica, a primeira recomendação no atendimento ao paciente, mesmo em caso de surto, é o diálogo. Se o agente de segurança ou de saúde não tiver sucesso, o próximo passo, então, é a imobilização.

"A impressão que eu tive é de que eles não são preparados para fazer esse tipo de abordagem. E isso é verdade, não tem a preparação, não há um treinamento para esse tipo de abordagem de paciente psiquiátrico. Não apenas a polícia, os serviços de saúde de emergência também não têm esse treinamento", comenta Mameri.

Como alternativa, ela sugere a integração entre a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) e a Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) na criação e promoção de cursos que qualifiquem, tanto os profissionais de saúde quanto os agentes de segurança.

Aspas de citação

Eles deveriam ser treinados e capacitados porque isso não deveria ser feito da forma como foi. No entanto, precisamos entender o contexto onde esses profissionais estão inseridos. Não que se deva permitir isso, precisamos humanizar o profissional também. Precisamos dar condições dele estar preparado para fazer esse tipo de atendimento e abordagem

Letícia Mameri Trés
Médica psiquiatra
Aspas de citação

O QUE DIZ A SESA

A reportagem questionou a Secretaria de Estado da Saúde sobre o oferecimento de treinamento que instrua os agentes de saúde, sobretudo os da urgência e emergência, para a abordagem aos pacientes em surto usando técnicas de imobilização. A Sesa informou, por nota, que o Samu 192 recebe constantes treinamentos de qualificação do atendimento, e as diretrizes são discutidas rotineiramente pela Comissão de Saúde da pasta.

Além disso, a Sesa explicou que o atendimento realizado pelo Samu em Guarapari, no último sábado, referente ao atendimento da paciente em situação de surto, foi realizado dentro do protocolo.

"Após acionar apoio da Polícia foram feitos os primeiros socorros, a paciente encaminhada para unidade de saúde e em seguida regulada para atenção especializada, o Hospital Estadual de Atenção Clínica (HEAC). É importante ressaltar que de acordo com o Protocolo do Samu 192 - 'Manejo da crise em saúde mental' estabelecido pelo Ministério da Saúde, os profissionais que exercem suas funções no atendimento de urgência e emergência estão respaldados para acionar apoio da polícia e/ou bombeiros em casos que coloquem em risco a segurança da cena", disse, em nota.

O órgão acrescentou ainda que há respaldo para a ação do Samu, também na Portaria nº 2048 do Ministério da Saúde, que garante uma “ação pactuada, complementar e integrada de outros profissionais não oriundos da saúde — bombeiros militares, policiais militares e rodoviários e outros, formalmente reconhecidos pelo gestor público para o desempenho das ações de segurança, socorro público e salvamento”.

O QUE DIZEM AS POLÍCIAS

A reportagem demandou a Polícia Militar e a Polícia Civil a respeito do treinamento de imobilização de policiais, se existe treinamento, em qual periodicidade, quantos profissionais já receberam e se seria possível uma integração com a Sesa para articular medidas de contenção a pessoas em surto. 

A Polícia Civil respondeu que na Academia da Polícia Civil do Espírito Santo (Acadepol) há uma disciplina obrigatória específica sobre imobilização e condução de presos, tendo a carga horária de 20 horas, que está presente em todos os cursos de formação e de aperfeiçoamento, sendo, este último, realizado de forma anual.

"Além disso, ainda há cursos de uso de equipamentos menos letais, como uso de spray e pistolas elétricas. Relacionado a situações que envolve o apoio do Samu, é realizado o treinamento de gerenciamento de crise, disciplina que também consta na matriz curricular da Acadepol/ES", destaca a nota.

Já a Polícia Militar informou que  "fornece o treinamento adequado aos seus profissionais nos diversos cursos realizados na corporação. O treinamento estabelece procedimentos básicos da atuação policial como o uso progressivo da força em conjunto com técnicas de defesa pessoal, imobilização e condução de pessoas".

A PM afirmou que o "policial militar como justo defensor da sociedade recebe a devida capacitação para a abordagem de pessoas e resolução dos fatos em todos os municípios de nosso Estado" e que a "capacitação objetiva o tratamento humanitário a todo e qualquer cidadão capixaba, indo desde o atendimento puramente assistencial até situações complexas como o gerenciamento de crises com reféns e pessoas com intuito de retirar a própria vida ou de outros, visando a todo momento resguardar a integridade e a dignidade humana".

Segundo a corporação, em casos onde o uso da força se faz necessário, existem "princípios norteadores de intensidade devidamente proporcional e na medida de superar a resistência da pessoa alvo da ação policial". Por fim, a PM disse que "eventuais casos onde ocorra qualquer desconformidade com os princípios técnicos, éticos e jurídicos são alvos de justa apuração pelo setor competente da Polícia Militar do Espírito Santo e encaminhados aos devidos órgãos do sistema de Justiça".

Também questionada sobre o tema, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) informou que as instituições de Segurança Pública possuem academias responsáveis pela formação e treinamento dos policiais durante a formação e no decorrer da carreira.

CURSO PARA O SAMU

No início deste mês, o Ministério da Saúde lançou a capacitação de profissionais do Samu no país, para atender pacientes em sofrimento psíquico. Nas três primeiras turmas, serão 108 profissionais capacitados em todas as capitais do país.

De acordo com o governo federal, o curso vai fortalecer a prática de condutas humanizadas e terapêuticas no âmbito da saúde mental, além de preparar os profissionais para uma assistência cada vez mais adequada a quem utiliza o Samu e apresenta quadros como ansiedade, depressão, violência autoprovocada, ideias suicidas e transtornos por uso de substâncias psicoativas. 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais