A descriminalização do porte de até 40 gramas de maconha aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) vai contribuir para reduzir uma balança desigual aplicada aos negros em comparação com brancos flagrados com a droga. Segundo especialistas, enquanto pretos e pardos são vistos pelas autoridades como traficantes, brancos abordados em situações semelhantes são considerados usuários.
No Espírito Santo, os números comprovam essas disparidades. Dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) apontam que, até o fim do primeiro semestre de 2024, 730 pessoas foram detidas por tráfico, posse ou uso do entorpecente (sendo 443 pessoas negras: 308 pardas e 135 pretas).
De acordo com Suellen Cruz, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a população negra forma a maioria encarcerada por ser alvo de estereótipos racistas enraizados na sociedade.
Questionada sobre os impactos sociais e econômicos que o encarceramento em massa de pessoas pretas e pardas causa na sociedade onde vivem, Suellen reforça a necessidade de políticas públicas que antecedam o uso de força policial.
“Apesar de vermos alguns avanços no sentido de projetos de ressocialização, o cárcere não reeduca ninguém, porque não tem ferramentas tão eficazes para isso. Antes de termos viaturas subindo os morros, as comunidades precisam ser assistidas socialmente, com educação, planos de segurança alimentar e outras ferramentas que colaboram com o desenvolvimento delas antes da chegada às drogas”, pondera.
Dados da Sesp ainda mostram que, entre os detidos, 642 são maiores de 18 anos. Entre esses, estão 400 negros (120 pretos e 280 pardos) e 134 são brancos, além de 5 pessoas identificadas como amarelas, uma como indígena, 87 sem identificação e 15 classificadas como "[raça] indeterminada". Entre os menores de idade, o cenário é parecido: do total de 88 apreendidos, 43 são negros (28 pardos e 15 pretos), além de 7 brancos, 36 sem identificação e dois como "indeterminados".
No acumulado, 443 pessoas formam o grupo da população negra (pretos e pardos) e 287 são das demais raças, uma diferença de, aproximadamente, 60,69%. Do total de 730 detidos, 639 são homens, 84 são mulheres e sete não foram identificados.
Até o fim de junho, as forças policiais do Estado apreenderam 73.591 buchas de maconha, 8.583 unidades (contabilizados como pedaços, cigarros e similares) e 331 kg da droga.
O levantamento feito pela Sesp, que conta com números até o dia 26 de junho, coincidem com a data da decisão do STF em descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal, diferenciando usuários de traficantes.
Estudos que colaboraram com a decisão mostram que negros são condenados como traficantes com o porte de quantidades menores do que brancos. O grau de escolaridade também gera distorções nas condenações, apontando que a tolerância é maior com os mais escolarizados.
Com a visão do STF, os usuários não poderão mais ser presos em flagrante. A droga deve ser apreendida e a pessoa notificada para comparecer a um fórum. O critério, entretanto, não é absoluto, mas circunstancial, já que outros elementos podem ser utilizados, como a posse de uma balança de precisão ou determinada quantidade do entorpecente embalada em porções que indiquem venda. Segundo o STF, esse é um parâmetro para tentar garantir tratamentos igualitários nas abordagens policiais e nos processos judiciais.
Apesar da mudança, a maconha não está legalizada, mas seu uso deixa de ser um delito penal e passa a ser considerado um ato ilícito sujeito a sanções administrativas, como medidas educativas, advertência e apreensão no momento da abordagem policial.
A reportagem questionou a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social sobre a quantidade média de maconha apreendida com os indivíduos em solo capixaba, mas, segundo a Sesp, não há detalhamento sobre cada ocorrência, somente o acumulado geral.
Segundo Eugênio Ricas, secretário da Sesp, as abordagens nas ruas são feitas através da avaliação e julgamento de cada policial, sendo subjetiva a decisão de realizar ou não a abordagem.
Conforme o secretário, a avaliação de cada policial define as abordagens, não sendo necessária uma espécie de manual para a tomada de decisões.
Para Fábio Marçal, advogado criminalista e especialista em Segurança Pública, o Espírito Santo não é o único alvo de ações que prendem a maioria de pretos e pardos nas ruas.
“O Brasil criminaliza a pobreza há anos. Quantas vezes vemos em filmes e novelas que o bandido é aquele cara negro, pobre e com cara de mau? E nas novelas que vemos as empregadas sempre negras e pobres? Isso corrobora para que a sociedade veja uma pessoa negra na rua e associe seu pensamento a isso”, diz Marçal.
“Falando no âmbito local, com certeza a polícia não aborda as pessoas da mesma forma na Ilha do Frade ou na Praia do Canto da mesma forma que aborda nos morros. São necessárias políticas que mudem esse cenário para que a polícia tenha mais inteligência e menos preconceito”, finaliza o especialista.
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