Caixões fechados, mortes sem velório e ausência do abraço reconfortante dos amigos e familiares. No ano em que o Espírito Santo bateu recorde no número de mortes, a forma de se despedir dos entes queridos mudou. Reflexo da pandemia do novo coronavírus, que já fez mais de 3.800 vítimas no Estado, os números gerais de registros de óbitos em 2020 é o maior dos últimos cinco anos.
De acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil, de janeiro a setembro de 2020 foram 21.725 mortes no Espírito Santo. O dado corresponde a 2.808 casos a mais que em 2019, ano que já apresentava indicadores elevados, com 18.917 óbitos no período avaliado. Em 2018, haviam sido 18.051 mortes; em 2017, 18.555; em 2016, 17.615; e, em 2015, foram 17.265 óbitos no Estado.
Ao analisar apenas o ano de 2020, é possível observar como o número geral de mortes aumentou no Espírito Santo durante a pandemia do novo coronavírus, chegando a 3.049 no mês de junho, quando houve o pico de casos e óbitos por Covid-19. Os registros passaram a cair nos meses seguintes, tendo queda acentuada em agosto, quando foram contabilizados 2.531 óbitos.
E a despedida de um ente querido, que por si só é um momento muito delicado, ficou ainda mais difícil durante a pandemia da Covid-19 devido aos protocolos de segurança que exigem distanciamento social. Quem passou por essa triste situação foi a psicóloga Janice do Carmo Demuner Magalhães, de 33 anos, que perdeu o pai Raimundo do Carmo, de 76 anos, após ele ser infectado pelo coronavírus em um hospital.
De acordo com Janice, o pai era auxiliar de enfermagem aposentado, assim como a mãe dela, e trabalhou a vida toda em hospitais. Com isso, a família sempre teve contato com a área da saúde. Os pais dela foram casados por 44 anos e Raimundo era o responsável por gerenciar a família. Sempre muito ativo e participativo, em 2017 ele descobriu uma insuficiência hepática que ocasionou em varizes esofágicas. Na ocasião, quase chegou a morte, mas logo depois teve uma melhora repentina. Desde então, ele seguia a vida normalmente, com acompanhamento médico. Quando a quarentena teve início no Espírito Santo, Janice resolveu fazer o isolamento na casa dos pais, para auxiliar em situações como ir ao mercado ou comprar medicamentos, por exemplo.
"Meu pai precisou parar o acompanhamento médico presencial, pelo risco de ser um idoso. Ele estava bem, mas, no final de abril, o quadro piorou após uma queda. No dia 1° de maio, ele já não conseguia se levantar, mas ainda estava consciente. Foi quando pediu para chamar toda a família: minhas irmãs, meus cunhados, os netos. Aí ele falou que estava sentindo a vida chegando ao fim. Que era para sermos firmes e continuarmos felizes. Nossa crença é espírita. Então, ele falou que tínhamos que ser fortes e que iríamos nos encontrar um dia. Nesse mesmo dia, ele foi internado. Na hora de chamar a ambulância, foi uma crise para nós porque não era a preocupação só com a doença dele, mas também por conta da pandemia", lembra.
Ao chegar ao hospital, Janice conta que presenciou um cenário de guerra. Ela viu mais de 20 pessoas chegando acamadas, com suspeita de Covid-19 e falta de ar. Mas, no caso de Raimundo, os médicos constataram que ele não estava infectado pelo vírus. A partir desse dia, ele passou por três internações.
Diferente de 2017, quando o idoso descobriu a doença no fígado e podia ter contato com toda a família e três visitas por dia, no contexto da pandemia, ele só podia ter contato com a filha Janice e ter uma visita diária que, ainda, poderia incluir idosos ou pessoas com comorbidades. Por isso, ele não pôde ver a esposa e a filha do meio, que estava responsável por cuidar da mãe. Após sair da UTI pela segunda vez e ir para o quarto, Raimundo pediu para se despedir da companheira, com quem viveu por 44 anos.
"Fomos vendo o caso dele se agravando pela quebra desse vínculo. Percebemos que os médicos e toda a equipe tentavam fazer o melhor, mas a demanda era muito alta. Ainda consciente, meu pai disse que o último pedido da vida dele era ver os olhos da minha mãe pela última vez. Eu pedi autorização aos médicos, falei que possivelmente eles não se veriam mais após 44 anos juntos, e me responsabilizei por isso. Eles se compadeceram e foi possível a despedida dos dois. Minha mãe foi lá, com máscara, e foi muito bonito. A gente não sabia, mas tanto eu quanto o meu pai já estávamos com Covid e foi sorte minha mãe não ter sido contaminada. Essa despedida foi um privilégio. Logo depois, restringiram as entradas", conta.
Na terceira internação do idoso, já com Covid-19, Janice também começou a ter mal-estar, vômitos e perda de olfato e paladar. Ao saber que o pai iria para a UTI Covid e que não poderia mais acompanhá-lo, a psicóloga revela que sentiu como se um buraco tivesse sido aberto aos pés dela. Ela disse que, como profissional da área da saúde, tentava entender o que estava acontecendo, embora não quisesse acreditar. Ao se despedir, ela conta que chorou muito. Enquanto ficava em quarentena em casa, sem contato com outras pessoas, a irmã dela passou a acompanhar o pai.
"Ver o meu pai, o amor da minha vida, intubado e eu tendo que ficar trancada em um quarto, foi muito difícil. O apoio que recebi através de mensagens, ligações e entregas de lembranças, foi de grande importância. Durante os últimos anos, eu trabalhei muito na minha cabeça a ideia de perder o meu pai, mas isso não incluía uma pandemia. Eu não podia ver minha mãe, abraçar meu marido, meus amigos... A última vez que nos falamos foi por chamada de vídeo que a psicóloga fez no hospital. Ele me disse: 'vem me buscar'. Essa humanização da área da saúde durante a pandemia foi essencial para que tivéssemos um mínimo de contato possível. A partir daí ele foi piorando, os órgãos foram parando, o fígado, o rim, o pulmão. Fui liberada da quarentena dia 5, e no dia 6 ele morreu. Como se tivesse me esperado para eu poder me despedir no enterro", recorda.
A psicóloga lembra que, em novembro de 2019, o pai decidiu fechar um plano funerário. Ele mesmo escolheu o cemitério Jardim da Paz, na Serra. Na época, falou à filha: "quero ser enterrado aqui porque é um lugar bonito e tem sol". Ao chegar em casa, contou à esposa, aos risos: "comprei nossa última moradia".
Embora pareça mórbido, Janice diz que esse momento foi uma escolha do pai que ajudou toda a família a entender o processo de partida dele. Mas, ao saberem que o procedimento no cemitério era enterrar as vítimas de Covid-19 dentro do próprio saco do hospital, a família decidiu contratar uma funerária para tentar fazer desse momento difícil mais humanizado. Apesar dos protocolos que impediam velório e abertura do caixão, a psicóloga conta que foi possível comprar um caixão com vidro e fazer uma despedida de cerca de 20 minutos.
"Era um momento importante para nós. Minha irmã mais velha, que ficou cuidando da minha mãe, não tinha conseguido ver o meu pai durante a internação. Esse momento assimila para nós a imagem de partida. Fizemos uma carreata bem grande até o cemitério, as pessoas na rua davam força para nós durante o cortejo. Foi muito simbólico passar por cima da Terceira Ponte porque passou um filme na minha cabeça. Meu pai, que é mineiro, contava que quando passou nessa ponte pela primeira vez, há anos, sentiu que estava ganhando de presente essa cidade que ele não conhecia. No cemitério, todas as pessoas precisaram ficar afastadas e com máscaras. Ficamos longe do caixão, mas nos deixaram fazer uma oração. Quando olhei para trás, e vi todos os amigos afastados, mas ali, foi muito marcante", relembra.
Além do pai, Janice também perdeu um primo de 58 anos, sem comorbidades, vítima da Covid-19. Vendo tantas pessoas que morreram vítimas da doença, sem que a família pudesse sequer ver o ente querido, ela afirma que poder estar presente no cemitério, mesmo que de longe, e ter a oportunidade de fazer uma oração antes do enterro, foi mais uma vez um privilégio.
"Como psicóloga, meu desafio agora é reconfigurar essa experiência que eu tive, de perder um pai na pandemia, para auxiliar outras pessoas. O pedido que o meu pai nos fez, de continuarmos felizes, é um dos mais difíceis. Mas estamos tentando, retomando a vida aos poucos. Dia 14 de outubro foi aniversário dele. Uma data que nunca faltou confraternização. Neste ano não foi diferente: compramos bolo, salgadinho, mas, no lugar dos parabéns, fizemos uma oração e lembramos dessa vida grandiosa que foi o meu pai", finaliza.
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