A proposta de alteração do Código Civil brasileiro — leis que regulam a vida do cidadão desde antes do nascimento até após sua morte — traz uma parte específica sobre direito digital. E um dos temas diz respeito à herança digital, estabelecendo, por exemplo, a transmissão hereditária de contas nas redes sociais. A atualização do texto passou pelas mãos de um grupo de juristas e foi apresentada ao Senado em abril deste ano.
O advogado na área de Direito e Família e Sucessões, procurador e professor universitário Alexandre Dalla Bernardina destaca que o novo Código Civil reconhece, expressamente, a existência de um "patrimônio digital". Ou seja, todos os perfis e senhas de redes sociais, contas de games, fotos, vídeos e textos armazenados em ambientes virtuais, além de criptomoedas e até milhas aéreas, são bens e, por isso, podem ser transmitidos a herdeiros no caso de morte do titular.
Para que isso aconteça, é necessário deixar tudo descrito em testamento ou por meio de um documento oficialmente válido — como reconhecido em cartório —, deixando claro quem são os sucessores, bem como aqueles que têm direito de acesso aos bens digitais. Caso a pessoa não tenha deixado sua vontade expressamente definida, caberá aos herdeiros acessar contas por força da lei de herança e pedir sua exclusão ou a sua conversão em memorial da pessoa falecida.
Caso das contas de Marília Mendonça (1995-2021) e do ator Paulo Gustavo (1978-2021). A da cantora sertaneja virou um misto de memorial e de divulgação de canções inéditas. A do humorista mantém-se intacta desde sua última postagem, antes de seu falecimento.
Segundo Dalla Bernardina, os herdeiros podem, também proibir ou restringir o acesso às informações e conversas íntimas a herdeiros. E é justamente aí que moram as controvérsias do novo Código Civil: o que diz respeito às informações pessoais.
Para o advogado José Eugênio Modenesi, também especialista em Direito Sucessório, a pessoa que morre tem, nas suas redes sociais, conversas privadas, o que não daria, em tese, direito à família em lê-las. “Mesmo sendo uma rede social rentável e remunerada, há ali as conversas pessoais e, há nisso, uma ambiguidade e onde reside o ajuste fino da legislação, em não permitir que o patrimônio se perca, mas também em não invadir a intimidade da pessoa, o que poderá ser estudado pelo juiz caso a caso."
Já para Sandro Rizzato, advogado especialista em Direito Digital, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) protege as informações pessoais. Na ausência do titular, uma terceira pessoa teria acesso a informações, que podem até mesmo gerar dano e problemas ao espólio. Para Rizzato, mesmo o acesso à nuvem de dados é um patrimônio pessoal.
“O conjunto desses bens compõe o espólio da figura falecida, e isso vai existir até o momento da total divisão de bens, que chamamos de monte-mor. Quem tem a legitimidade de administrar, em tese, é o inventariante - os filhos, ou cônjuge ou pais. Namorado/a não têm direito de herança”, diz.
Alexandre Dalla Bernardina ressalta que, atualmente, não há uma regulamentação acerca do tema da herança digital, o que vem sendo definido pontualmente pelos tribunais. "Há plataformas que têm regramento próprio, que permite, inclusive, a indicação de um 'contato herdeiro'. Mas a ausência de regulamentação tem ocasionado ações judiciais nas quais os herdeiros pedem, por exemplo, autorização para acesso a contas digitais de e-mails e de redes sociais, além de acesso a arquivos digitais."
João Eugênio Modenesi reforça a importância da adaptação do Código Civil a temas atuais e que isso já está sendo tratado em relação às redes sociais, especialmente dentro do que tem valor patrimonial, como YouTube, e o que não tem valor patrimonial, como Kindle e contas do Google.
Sandro Rizzato explica que o YouTube gera conteúdo e tem rendimento, conta como patrimônio financeiro, e aí sim, é passível de sucessão, partilha e imposto de transmissão pós morte. Assim como o YouTube, o OnlyFans também monetiza as pessoas que produzem conteúdo. Tanto num caso como no outro, a monetização vai para o herdeiro, que pode ter acesso a esses valores.
Na ausência da pessoa e da não produção específica de conteúdo cabe à plataforma devolver o dinheiro do assinante por ausência de novos conteúdos, ainda que o conteúdo hospedado continuará monetizando, tal como no YouTube, que paga tanto para novos conteúdos como para os já existentes, e isso permanecerá no espólio.
O uso de inteligência artificial generativa também é outro assunto previsto na atualização do Código Civil. Dalla Bernardina destaca que o projeto prevê a possibilidade de as pessoas restringirem a utilização de suas vozes ou imagens após o falecimento.
"Isso pode ser muito útil para cantores e demais artistas, pois há um regramento sobre a utilização de imagens e vozes de pessoas vivas ou falecidas, bem como a proibição expressa de conteúdo discriminatório e o respeito aos direitos de personalidade." Para tanto, o advogado dá como exemplo uma recente propaganda que gerou debates por utilizar, com a permissão dos herdeiros, a imagem da cantora Elis Regina.
Segundo Modenesi e Rizzato, não há prazo ainda para que o anteprojeto seja aprovado no Congresso e, caso demore, há o risco de que as demandas mudem quando da aprovação da lei. Não custa lembrar que, em 1997, houve um Projeto de Lei, o 01-0854/1997, que proibia o uso de Tamagotchis, bichinhos virtuais, nas escolas municipais de São Paulo. Quando o texto foi aprovado, a febre dos brinquedos já tinha passado.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta