Quantas vezes você já parou para pensar em quanto a ode à ascendência italiana pode ser sinônimo de identitarismo? Ou, quantas outras vezes, não lhe causou algum estranhamento ver uma pessoa de pele preta em uma aula de balé? E quando pensa na imagem de uma pessoa de periférica - qual é a imagem que lhe vem à cabeça? São exemplos hipotéticos do dia a dia, mas muito presentes na vida de negros e negras do Espírito Santo que, na manhã desta quinta-feira (21) - um dia após o Dia da Consciência Negra - protagonizaram a roda de conversa "Coisa de preto: a história escrita por quem uma vez foi só descrito”, em Vitória.
O encontro reuniu o doutor em Educação, professor da Ufes e escritor Gustavo Forde, a autora e multiprofissional Ríssiani Queiroz e a atriz, poetisa e ilustradora Luiza Vitorino, em um bate-papo de quase duas horas. Os três falaram sobre os primeiros passos no mundo da literatura e como a ancestralidade confere digital às suas produções. O encontro foi promovido pela Rede Gazeta.
"Eu demorei a acreditar que seria possível esse sonho de escrever um livro, que para mim era inalcançável. Vejo meus poemas como algo doloroso; porque eles falam da minha vivência de mulher de periferia, e de como esses temas como a violência, a forma como veem a periferia, me atingem. Demorei a perceber que primeiro eu tinha que sofrer, através da escrita, para que os outros sofressem e pensassem nos meus poemas", afirmou Luiza, autora do livro de poesias "Encaracoladas".
Forde, que desde 2016 é professor da federal capixaba, mas que iniciou a vida docente ainda nos anos 1990, faz questão de provocar a reflexão sobre o quanto as pessoas são reticentes em enxergar com naturalidade a presença de negros e negras em espaços de vivência como, por exemplo, a universidade. Para ele, parte desta estranheza remonta à própria história do Brasil.
"A Consciência Negra diz para as pessoas brancas que a experiência do Quilombo de Palmares foi uma experiência de estado livre e organizado no Brasil, que enfrentou o estado colonial. Precisamos dar nome às coisas, e já há algum tempo eu tenho refletido que esse estado colonial não trouxe consigo uma civilização. Porque etimologicamente civilização é um modo de sociedade nobre, onde todos tenham prosperidade. O que o colonialismo trouxe foi tudo, menos civilização. O que ganhou espaço no Brasil é a barbárie, mas nos disseram que isso é que é civilização", destaca o professor e escritor.
Vivência em todo o corpo
Rissiane Queiroz, autora de "Negra Semente" e de "Contusão", frisou o papel da vivência familiar como ferramenta para perceber-se como mulher negra e, posteriormente, artista das letras. Segundo ela, o racismo "torna todo o processo mais desafiador" pois, em sua biografia, muitas vezes se viu duvidando das chances de conquistar espaço no mundo da literatura.
"Tem um provérbio africano que diz que enquanto os leões não contarem suas histórias, as histórias sempre serão contadas pelos caçadores. Meu primeiro livro, o "Negra Semente", é um livro acartonado, de papelão, com imperfeições, como a própria vida é. Já o meu segundo livro, "Contusão", fala das complexidades do que é o ser humano. E é o primeiro livro publicado por uma editora, o que me permitiu estar em espaços que antes eu nunca estive. O racismo torna todo o processo mais desafiador. Porque de diversas formas nos dizem que o lugar do fazer intelectual não é nosso", pontuou a autora.
Herança cultural
Conduzida pelo editor-chefe de A Gazeta e CBN Vitória, Geraldo Nascimento, a roda de conversa foi idealizada pela analista de Comunicação Institucional da Rede Gazeta Wanessa Eustachio. No bate-papo, o professor Gustavo Forde também fez uma provocação à plateia: por que a manifestação pública da cultura afro-brasileira muitas vezes é tachada, de forma pejorativa, como "identitarismo", enquanto manifestações da cultura europeia por seus descendentes são tidos como festas da imigração?
"Tem prefeitura que gasta dinheiro público para pintar meio-fio com as cores da Itália. Isso é que é identitarismo! O eurocentrismo e o racismo andam de mãos dadas, e naturalizam uma espécie de fetiche pela ascendência europeia que apaga e invalida a presença negra. Até o incentivo à produção cultural é maior nos territórios brancos", disse Forde.
Rissiane, por sua vez, ponderou que a história do povo negro precisa ser também lembrada sob outro aspecto: o dos territórios que já estavam consolidados, sobretudo no continente africano, e que foram dizimados pelos escravagistas: "Nossos ancestrais tiveram o tempo de parir a humanidade, construir impérios, mas essa história foi interrompida por uma travessia forçada no oceano. Por isso é importante que as crianças da minha família saibam que não são descendentes de escravos, e sim de impérios".
Antes do encerramento do bate-papo, Luiza Vitório fez questão de exaltar o quanto a vivência individual de cada pessoa preta é única e, por isso, precisa ser valorizada. Algo que, como ela mesma confidenciou durante o evento, não pôde vivenciar na própria experiência de vida. "Tentavam encaixar os meus poemas a uma forma, a um padrão de escrita. Mas se eu mudasse, não eram os meus poemas, os meus sentimentos. O racismo também me diz isso: que os meus erros não me torna aceitável. Mas algum dia alguém chega e não tenta mais te modificar para caber na sociedade", contou.
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