> >
O que é a coleta, tradição de indígenas venezuelanos para garantir sustento

O que é a coleta, tradição de indígenas venezuelanos para garantir sustento

Vistos nas ruas de Vitória em busca de ajuda, indígenas da tribo Warao entendem a prática como forma de sobreviver ao dia a dia e ajudar familiares que ainda estão na Venezuela

Publicado em 29 de outubro de 2022 às 10:13

Ícone - Tempo de Leitura 9min de leitura
Venezuelano pede ajuda com cartaz em Vitória
Venezuelano na Avenida Leitão da Silva. (Felipe Sena)
Reinaldo Fonseca
Repórter / [email protected]
Felipe Sena
Estagiário / [email protected]

Pelas ruas de Vitória, indígenas da Venezuela tentam conseguir dinheiro para mudar de vida. Com poucas chances de trabalho e sem dominar a Língua Portuguesa e o espanhol, os estrangeiros da etnia Warao, que falam dialeto próprio, têm sido vistos em feiras, em frente a hospitais e em áreas de comércio pedindo ajuda financeira.

Alguns sonham em ter um lugar próprio para morar. Outros querem ajudar seus familiares que continuam no país vizinho,  onde a alta inflação e o desemprego têm levado à fome. 

Enquanto para nossa cultura esse ato de pedir dinheiro nas ruas significa mendicância, ou seja, esmola, para os Warao, no entanto, é uma tarefa comum para a sobrevivência. Eles chamam essa atividade de coleta, que é comparada, na tradição desse povo, ao trabalho que exerciam nas florestas, como pescar, caçar e colher para se alimentar.

“A coleta que é feita hoje em dia nas ruas das cidades é uma transposição dessa prática milenar para a contemporaneidade. Não é esmola, porque eles não têm essa noção de mendicância na sua forma de vida”, explica a professora Brunela Vincenzi, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que também é coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ufes e da Andhep (Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação).

Dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e do Ministério da Cidadania mostram que o Espírito Santo interiorizou 308 refugiados da Venezuela desde julho de 2019 a setembro de 2022. Os números, no entanto, podem ser ainda maiores, já que nem todo imigrante dessa nação acaba sendo contabilizado pelas autoridades.

O levantamento ainda revela que, só em Vitória, há 104 pessoas vindas desse país no período analisado, enquanto outras 108 estão distribuídas em quatro municípios da Região Metropolitana — Vila Velha, Viana, Cariacica e Serra. Não há informações, porém, sobre quantos desses venezuelanos são da etnia Warao.

O primeiro pico de entrada de venezuelanos no Estado ocorreu em março de 2019, quando 24 pessoas chegaram às terras capixabas. O segundo movimento foi em novembro do mesmo ano, com mais 31 imigrantes passando pelas divisas do Espírito Santo.

Desde então, a interiorização continuou ocorrendo, mas em nível menor até que uma nova onda de imigração ocorreu em agosto de 2022, com a entrada de 28 venezuelanos no Estado. Um dos principais fatores para isso foi a chegada de 25 Waraos, vindos da Bahia por um ônibus clandestino pago pela Prefeitura de Teixeira de Freitas.

Segundo o ACNUR, o termo interiorização se refere ao objetivo de oferecer maiores oportunidades de inserção socioeconômica aos venezuelanos e diminuir a pressão sobre os serviços públicos do Estado de Roraima, por onde eles cruzam a fronteira.

"LÁ ACABOU TUDO. TRIGO, TAPIOCA..."

Venezuelano na Avenida Leitão da Silva. (Felipe Sena)

Na manhã da última segunda-feira (24), uma família de venezuelanos estava na Avenida Leitão da Silva, em Vitória, em um sinal em frente a um hospital, pedindo doações. Um homem andava entre os carros com um cartaz escrito em uma peça de isopor. Do outro lado da via, estava uma mulher com um bebê no colo. Mais à frente, havia um idoso, também segurando uma placa.

Os três adultos estavam também com uma jarra de plástico, onde carregavam as moedas que recebiam. O homem que andava entre os carros aceitou falar com a reportagem. "Vim da Venezuela. Lá, tudo acabou. Milho, trigo, sal, roupas...”, relatou o homem, que não se identificou.

Quando perguntado se o dinheiro que ele estava pedindo também seria usado para ajudar pessoas na Venezuela, ele pareceu não entender a pergunta e voltou a falar sobre seu país. “Acabou tudo lá. Tapioca, gasolina... Tudo”, afirmou.

Tanto a prática da coleta pelos Waraos quanto a “esmola” não são proibidas no Brasil. Pela legislação brasileira, a mendicância deixou de ser uma infração penal desde 2009 pela Lei 11.983/2009. O que não é permitido é a permanência de crianças nas ruas pedindo dinheiro.

A assistente sênior de proteção do Escritório de Campo do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados da ONU (ACNUR) em São Paulo, Lyvia Barbosa, declara que, para os Warao, entende-se que a prática de pedir dinheiro nas ruas segue a mesma lógica que orienta a coleta de frutas e pequenos animais no ambiente natural. As técnicas tradicionais de coleta teriam sido transportadas, portanto, para outros espaços.

Lyvia ainda comenta que, na maioria das vezes, o dinheiro coletado nas ruas não é utilizado apenas para o sustento das famílias que estão nos territórios, mas, principalmente, é enviado aos familiares que ficaram na Venezuela para que possam se alimentar, comprar medicamentos ou até possibilitar a vinda de alguns membros para o Brasil.

Aspas de citação

A coleta de dinheiro pelo Warao como uma prática sistemática se iniciou na década de 1990 na Venezuela. Ocorreu em decorrência de um movimento dos Warao para solicitar assistência do governo para enfrentar a epidemia de cólera.

Lyvia Barbosa
Assistente Sênior de Proteção do Escritório de Campo do ACNUR em São Paulo
Aspas de citação

Lyvia complementa que a prática começou em uma das maiores cidades venezuelanas, com a ida dessa tribo para a zona urbana. "As pessoas, sem que eles pedissem, começaram a lhes entregar comida, roupas e dinheiro", explicou.

Venezuelano em feira no Centro de Vitória
Venezuelano em feira no Centro de Vitória. (Geraldo Nascimento)

FALTA DE OPORTUNIDADES DE EMPREGO PARA VENEZUELANOS

Segundo a professora Brunela, outro fator que contribui para a prática da coleta é o fato de os venezuelanos terem dificuldades em conseguir emprego. Ela explica que a falta de formação e instrução para os trabalhos formais da maneira que conhecemos no Brasil e a falta de conhecimento do português e do espanhol são exemplos que impedem os indígenas de conseguirem oportunidades

Ao comentar sobre as formas de trabalho comuns aos indígenas Warao, a especialista disse que o grupo se resumia à pesca e ao artesanato, que é feito com a folha da palmeira de buriti. Além disso, também revelou que algumas cidades do país estão desenvolvendo medidas para possibilitar a prática dessa forma de trabalho, com o apoio do ACNUR.

"Aqui no Estado, estamos ainda estudando e trabalhando com as autoridades para o desenvolvimento e a facilitação dessa forma de trabalho”, disse a professora.

Desses 308 refugiados registrados pelo ACNUR no Espírito Santo, 139 pessoas são adultos e, desses, apenas 66 conseguiram empregos formais, principalmente no setor de construção civil. De acordo com os dados, 56% dos adultos têm ensino médio completo e apenas 10% concluíram o ensino superior.

CHEGADA DOS WARAO EM VITÓRIA

Na madrugada de 16 de agosto de 2022, um grupo composto por 25 venezuelanos da etnia indígena Warao foi deixado perto da Rodoviária de Vitória. Antes de chegarem ao Estado, eles estavam em Teixeira de Freitas, no interior da Bahia. Foi a própria prefeitura da cidade baiana que fretou o ônibus para os refugiados.

Após a chegada em Vitória, o grupo permaneceu em situação de rua por algumas horas. Depois de uma recomendação da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES), os Warao foram transportados para um abrigo provisório cedido pela Prefeitura de Vitória, onde receberam alimentos e cuidados médicos iniciais, na tarde do dia 16.

Na ocasião, o cacique da tribo, Ruben Mata, disse à reportagem de A Gazeta que o grupo entrou no Brasil pelo Estado de Roraima, passou por outros municípios brasileiros e, em seguida, foi para Jequié, outra cidade do interior da Bahia. Uma assistente social, porém, teria dito para eles que lá era uma cidade pequena e os integrantes teriam de se mudar para conseguir trabalho.

Em seguida, partiram para Teixeira de Freitas, onde foram orientados novamente por uma assistente social a virem para Vitória,  porque as condições de vida aqui seriam melhores. Eles foram deixados próximo à Rodoviária de Vitória, sem receber nenhuma outra instrução.

Além desses 25 venezuelanos, outros 21 também foram trazidos para Vitória no dia 30 de agosto deste ano. Eles vieram de Itabuna, também no Sul da Bahia. Esses últimos ainda não foram contabilizados pela ACNUR. Em seguida, uma outra família com 5 refugiados também chegou à capital capixaba e foi levada ao abrigo.

Em abril do ano passado, um grupo de 30 venezuelanos já tinha chegado em Vitória, mas retornou à Bahia, por não ter encontrado condições ideais para viver no Espírito Santo. 

Em novembro de 2021, o Espírito Santo já contava com um grupo de refugiados. Segundo dados do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo), da Unicamp, o número de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado no Estado era de 176 pessoas. Além delas, em dezembro de 2021, cerca de 30 pessoas já eram reconhecidas como refugiadas em solo capixaba.

Em vídeo, a secretária de Assistência Social de Vitória (Semas), Cintya Schulz, informou, no último sábado (22), que os refugiados se encontram em abrigo provisório na Capital e que, caso sejam vistos realizando a coleta, os cidadãos devem acionar o Fala Vitória pelo 156.  Por meio da ligação, uma equipe de abordagem social será direcionada ao local para auxiliar os Warao. 

Brunela Vincenzi, no entanto, diz que as condições do abrigo em Vitória ainda não são ideais para a permanência dos Warao. “Temos somente dois quartos para 51 pessoas. A cozinha é improvisada do lado de fora da casa. Metade das pessoas dorme em uma tenda de lona do lado de fora da construção de concreto, de modo que, quando chove, têm todas as suas coisas molhadas e perdidas. Como foi o caso do último domingo (23)".

Em fala sobre as condições do abrigo, a secretária Cintya Schulz diz que a Semas tem cumprido com todas as prerrogativas que estão dentro das suas competências e que está sendo feito um trabalho junto do Governo do Estado para encontrar um espaço mais adequado aos hábitos e cultura dos Warao. 

QUEM SÃO OS WARAO

Família Warao que vive em espaço de acolhimento em Manaus
Família Warao que vive em espaço de acolhimento em Manaus. (Felipe Irnaldo/ACNUR)

Uma publicação do ACNUR Brasil, intitulada “Os Warao no Brasil – Contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes”, explica que os Warao são a etnia mais antiga na Venezuela: estima-se que vivam lá há aproximadamente oito mil anos.

Segundo o coordenador do Núcleo de Apoio aos Refugiados no Espírito Santo (Nuares), Rafael Simões, a fuga dos Warao ocorre devido a duas questões, principalmente:

Simões explica que, por conta da própria organização do poder estatal venezuelano e do crescimento do crime organizado na região amazônica, os Warao têm muitos problemas com grilagem de terras para exploração mineral.

Aspas de citação

Eles são expulsos da terra. Começa a faltar água e animais na região. Isso está forçando a saída deles do seu local de origem. É algo que está acontecendo há alguns anos, mas se intensificou desde 2020

Rafael Simões
Coordenador do Nuares
Aspas de citação

O coordenador também comenta sobre a falta de políticas inclusivas que diminuam o choque cultural de povos estrangeiros no Brasil. Segundo ele, não há políticas de integração efetivas para os estrangeiros. "Muitas vezes, nos deparamos com grupos que temos conhecimentos das suas culturas. Precisamos de mais tempo e esforço para nos relacionarmos com essas pessoas em termos de igualdade”, destaca Rafael.

CRISE NA VENEZUELA

Em 2014, a Venezuela mergulhou em uma crise política, social e humanitária. Um dos principais motivos foi a crise mundial de petróleo, que desvalorizou o preço do produto no mercado internacional. Como consequência, o governo reduziu a compra de itens básicos e alimentos para a população.

Devido ao problema, milhares de venezuelanos e outras etnias presentes no país buscam refúgio em nações vizinhas. No Brasil, a falta de necessidade de visto é um facilitador para os venezuelanos. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que mais de 700 mil refugiados estão em território brasileiro.

Entre 1999 e 2013, a Venezuela teve um crescimento econômico sob a presidência de Hugo Chávez. Com base na venda e exportação de petróleo, o ex-presidente fez uma ampla distribuição de renda no país, que teve impacto direto no Produto Interno Bruto (PIB) venezuelano, por exemplo.

A economia venezuelana do Chavismo era baseada exclusivamente na venda de petróleo. Dessa forma, foi criada uma dependência dos ganhos vindos da venda do produto, que resultou na falta de investimento em outros setores, como a indústria e agricultura. Assim, o país fazia a importação da maioria dos bens que não eram produzidos no próprio território.

Outro dos motivos que dão base à crise é a disputa política entre Maduro e Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente interino da Venezuela em 2019. A tensão entre os dois políticos e as pressões externas da comunidade internacional, principalmente dos Estados Unidos, contribui para a escassez e perseguição política dentro do país.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

Tags:

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais