Um passado doloroso foi revelado durante as escavações para a restauração e revitalização do Santuário de São José de Anchieta, no município do Sul capixaba que recebe o nome do santo brasileiro. Restos mortais de mais de 80 pessoas foram encontrados recentemente por arqueólogos no local. As ossadas, segundo os especialistas, datam de 1918 e 1920. Nesse período, a gripe espanhola matou milhões de pessoas no país e no mundo.
A descoberta ocorreu no final do ano passado, durante a retirada de 40 centímetros de areia sob o piso da igreja do Santuário de São José de Anchieta. No local, os pesquisadores encontraram mais de 80 ossadas humanas. Outras cinco foram localizadas no pátio da residência jesuítica.
Segundo análise do arqueólogo coordenador das pesquisas, Ricardo Augusto Silva Nogueira, o pátio interno do santuário serviu como cemitério da cidade até o início do século XX, funcionando durante o período da gripe espanhola. Antigos registros dos padres descrevem, com relatos da população, que os sepultamentos aconteciam desordenados na Vila Benevente, sendo várias mortes por pestes, e descrevem a situação desagradável pela decomposição dos corpos abaixo do piso da igreja, entre os anos de 1928 a 1933 . Ossos triturados e esmagados em meio a terra e cal apontam que os túmulos eram reabertos para a realização de novos enterros.
“As sepultaras vistas na igreja são de pessoas humildes, sem posses visíveis. Não existe registro delas, nem lápides, numerações, delimitações de cova. A maioria foi enterrada diretamente no solo. Não existe nenhuma referência religiosa material nos enterramentos”, explicou o arqueólogo.
No período assolado pela gripe espanhola, o santuário não estava sob a gestão dos jesuítas. A ordem só reassumiu em Anchieta alguns anos depois, já que foram expulsos do país em 1759 pelo secretário de estado português Marques de Pombal e somente voltaram em 1928. Os jesuítas foram acusados de apoiar os indígenas na resistência contra Portugal.
Os historiadores acreditam que a chamada Grande Gripe chegou ao Brasil em setembro de 1918. Na época, grande parte das vítimas – 35 mil em todo o país - foram enterradas como indigentes e em valas coletivas, como as encontradas recentes no Sul do Espírito Santo.
"Os vestígios materiais evidenciados no pátio interno do Santuário sugerem relação com os anos de 1918 a 1920, período de incidência da influenza no Estado. O orgulho de realizar um bom trabalho de arqueologia no espaço que hoje se encontra restaurado e revitalizado, contrasta com a tristeza sentida quando revelamos este cenário de sofrimento e reclusão tão parecidos com nossa realidade histórica ocasionada por uma nova pandemia global", conclui Nogueira em um artigo sobre o caso de Anchieta.
Os esqueletos encontrados foram guardados em urnas apropriadas para, posteriormente, serem enterrados no mesmo local, na igreja abaixo do novo piso. Eles serão enterrados novamente com orações dentro das caixas, após benção em missa ainda sem data definida. “Considero que a presença da arqueologia e dos responsáveis pelo monumento foi muito importante, afinal, este episódio registra momentos desconhecidos e relevantes da nossa história”, afirma Erika Kunkel Varejão, presidente do Instituto Modus Vivendi, responsável pelo restauro.
Segundo ela, o monitoramento arqueológico, além de ser obrigatório em obras como a do Santuário, contribui para compreender e certificar o passado, desde o modo de vida até as doenças e os fatos históricos. “Tudo pode ser certificado e validado”, frisou.
Além do acompanhamento permanente de profissionais de arqueologia, o trabalho teve supervisão do reitor do Santuário Padre Nilson Morástica e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
O Santuário Nacional de São José de Anchieta passa por obras de restauro e entrou na etapa final da obra. O trabalho foi iniciado em 2018 e tem conclusão prevista para 2021. Entre os trabalhos de revitalização está a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, um dos símbolos da presença jesuíta no Brasil, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1943.
O restauro foi dividido em duas etapas: a primeira etapa contemplou acessibilidade às pessoas com dificuldade de locomoção, como rampas, banheiros adaptados sinalização em braile e plataformas elevatórias para que os visitantes tenham acesso à Cela de São José de Anchieta e às salas do museu. Na segunda etapa, ainda em execução, inclui o restauro da Igreja, a montagem da sala de documentação e estudos e o paisagismo cultural na área do entorno do Santuário.
O conjunto arquitetônico é um templo importante de difusão da fé católica e concentra a história de São José de Anchieta. O lugar foi escolhido pelo jesuíta para viver os últimos anos de sua vida, onde faleceu em 9 de junho de 1597. O padre foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 1980 e canonizado em 2014 pelo Papa Francisco, se tornando o terceiro santo brasileiro.
São Jose de Anchieta foi enterrado junto ao altar-mor da então Igreja de São Tiago, hoje Palácio Anchieta. Lá ficou enterrado por seis anos, depois partes dos seus ossos foram levadas para Bahia, São Paulo, Portugal e Roma. Atualmente, parte dos ossos do Santo, chamados relíquias, se encontram no Santuário.
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