Mudar a rotina, ter que lidar com uma quarentena rígida, distanciamento e isolamento social pode ser um exercício mais devastador e com impactos negativos para algumas pessoas. No Espírito Santo, especialistas têm atendido pacientes que relatam sintomas parecidos com o de soldados quando voltam de uma guerra, por exemplo.
Em entrevista à reportagem de A Gazeta, a psicanalista, psiquiatra e psicogeriatra Maria Benedita Reis explicou como a pandemia pelo novo coronavírus tem afetado algumas pessoas mais intensamente. "Estamos vivendo um tempo absolutamente novo para todos nós; há um ano jamais imaginávamos passar por tudo isso. Vivenciar a pandemia nos remete a sentimentos de falta de controle, impotência, medo de morrer, entre tantos outros", explicou.
Benedita explica que o sentimento de perda de controle é um dos principais gatilhos para a angústia, e diz que alguns pacientes têm apresentado casos de fobias graves e impactantes. "Quadros de transtornos do estresse pós-traumático (TEPT), condição comum em situações de catástrofes, guerras, sequestros e pandemias, onde a pessoa fica revivendo o sofrimento, mesmo após o trauma", afirma.
Também estão sendo atendidos por Benedita enfermeiros e até colegas médicos que foram infectados, precisaram ficar internados e apresentaram quadro de TEPT, o que ela classifica como "uma condição incapacitante e de muito sofrimento psíquico".
Por tudo estar instável e difícil de ser vivido e compreendido, a psicanalista diz que as pessoas acabam tendo o sentimento de impotência e solidão.
Adultos, segundo a psiquiatra, estão apresentando sintomas depressivos, alterações do sono, perda da esperança, dificuldade para fazer planos e até pensamentos de morte, ansiedade, sensações corporais diversas como taquicardia, sudorese intensa, sensação de que vai ter um derrame, de que pode não conseguir ser internado caso precise e até de agressividade.
Em relação às crianças de idade escolar, a psicanalista diz que os especialistas têm percebido que estão mais ansiosas, pois não estão frequentando a escola e tiveram sua rotina e a de seus pais totalmente modificada, o que pode gerar insegurança.
"Uma população que também nos preocupa é a população de idosos, pois muitos se viram subitamente sozinhos, pois pararam de receber a visita de familiares próximos, quer em casa quer nas casas de repouso, o que agrava o sentimento de abandono e vulnerabilidade, aumentado os sintomas depressivos", completou Benedita.
A psiquiatra finaliza dizendo que é importante ressaltar que pessoas que já apresentam doenças mentais, quer leves, quer mais significativas, podem apresentar uma exacerbação dos sintomas psiquiátricos, que muitas vezes estavam sob controle.
Outras pessoas, segundo ela, sem doenças psiquiátricas prévias, podem apresentar quadros novos, secundários ao sofrimento atual, quer como consequência do isolamento social e suas consequências, como o isolamento, a perda de emprego, a interrupção dos estudos, a mudança de planos, a perda de pessoas queridas, a experiência de terem sido contaminadas e terem ficado internadas sem acompanhantes, a experiência de terem sido entubadas devido à insuficiência respiratória, as dores e a falta de ar, entre outras, podem levar à abertura dos quadros psiquiátricos novos, em pessoas sem doenças mentais prévias.
"Os artigos médicos internacionais publicados em revistas médicas de impacto também têm alertado para o surgimento de manifestações psiquiátricas secundárias a lesões orgânicas diretas, causadas pelo vírus, como as vasculites, que ainda estão sendo estudadas", finalizou.
Para explicar os "Covid Dreams" que surgiram no nosso sono durante a pandemia, Maria Benedita cita Freud, considerado o pai da psicanálise. "Freud definiu os sonhos como realização de desejos, os quais apareceriam, nos sonhos, disfarçados em símbolos e imagens. Na abordagem psicanalítica, os sonhos seriam interpretados pela dupla paciente-analista, durante o trabalho analítico. Os sonhos seriam, para a psicanálise, uma manifestação do inconsciente, assim como os atos-falhos e os chistes", disse.
Ela afirma que a pandemia, vivida como algo traumático para a mente, com a mudança de nossa rotina e a sensação de perda de controle, pode trazer reflexos no sono e nos sonhos. "As pessoas têm relatado sonhos estranhos e pesadelos, e o medo da morte pode aparecer nos sonhos através de conteúdos ameaçadores, frente ao desamparo vivido na atual pandemia. Até mesmo a dificuldade para viver e elaborar o luto, real ou imaginário, pode produzir sonhos com conteúdos relacionados a essa perda", finalizou.
A reportagem de A Gazeta também entrevistou a pneumologista e especialista em medicina do sono Jéssica Polese. A médica explica que o sonho, na fisiologia, acontece durante a fase REM do sono. Este, segundo ela, é o estágio onde se tem os sonhos e é o local do nosso cérebro onde acontece muita atividade cerebral, é como se o cérebro funcionasse como se estivesse em vigília.
"Durante esse estágio REM, o sono é sedimentado ou, de alguma maneira, acalentado. Você recupera perdas emocionais, sejam elas de caráter negativo ou positivo. Tudo isso se faz durante o estágio REM. Acredita-se que ele é muito importante na parte emocional da pessoa", detalhou.
Polese afirma que a situação da pandemia afeta o sono e o sonho de diversas maneiras, porque todos tiveram o ritmo de sono e funcionamento do organismo rompido. "Isso tudo exige uma mudança de comportamento muito grande: mudanças no trabalho, o rompimento de vida, de ir à escola... Só isso já é um baque tremendo", reforçou.
A especialista destacou que o que estamos vivendo pode ser considerado um trauma coletivo, que seria algo que afeta agressivamente uma coletividade, e se perde a impressão de continuidade da vida, como se houvesse um rompimento muito importante.
"É um trauma comparado a uma guerra mundial o que estamos vivendo. Não é um ataque de soldado, mas é de pegar o vírus, passar o vírus ou perder um ente querido", disse.
Com a pandemia, Polese reforça que alguns pacientes precisam realmente ficar isolados e que o isolamento individual trás consequências que não serão muito boas em termos de sociedade.
"O isolamento por Covid-19 é muito restrito. Então a gente vem assistindo pacientes desenvolvendo surtos psicóticos, insônia e problemas depois da alta médica. Isso vai ser muito maior. Esse trauma coletivo tem que ser melhorado com a esperança de que vamos seguir com a nossa vida apesar de tudo", completou.
Com as vivências e a rotina que sofreu mudanças drásticas em decorrência da pandemia, a especialista em medicina do sono destaca que é comum que tudo isso se manifeste nos nossos sonhos de maneira mais agressiva. "É comum as pessoas se verem sonhando com episódios negativos, situações nas quais elas estão em risco... Situação de solidão. Isso é diretamente refletido no sono e sonho. Todo esse caos emocional causa muita insônia. Apesar das pessoas ficarem muito em casa, elas dormem menos e não têm um sono reparado", enfatizou.
Por fim, para que um pesadelo não vire neura ou fique sem respostas, Polese indica que as pessoas precisam saber entender a relação do sonho com o sentimento que ele causou, de onde ele veio, para onde ele quer ser conduzido mas destacou que isso já é função da psicanálise. "Nessa época, que estamos com tudo tumultuado, cheio de preocupações, é normal dormir e sonhar com essa carga emocional ruim. Esse tipo de sonho às vezes é repetitivo, parecido, vale a pena tentar avaliar isso melhor porque traz uma informação e um melhor encaminhamento", concluiu a profissional.
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