Após publicação no Diário Oficial da União da portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde, nesta sexta-feira (28), que altera regras sobre o procedimento a ser adotado pelos profissionais da saúde em casos de aborto em razão de violência sexual, especialistas debateram o tema. Dentre as novas exigências, a medida inclui a oferta para que a gestante veja imagens do feto, em ultrassonografia, além da necessidade de preenchimento de um questionário sobre a violência sofrida, e a necessidade de que a equipe médica comunique o caso à autoridade policial.
Sobre a questão do ultrassom, a socióloga e advogada Layla dos Santos Freitas, atualmente presidente da Comissão da Mulher da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Espírito Santo (Abracrim-ES), considera um "absurdo" . "Um ponto absurdo dessa portaria é a possibilidade de apresentar o bebê/feto para a vítima, através de ultrassom. Isso é totalmente indevido. Busca normatizar que o Estado pode buscar retirar da vítima a sua vontade, da sua autonomia enquanto corpo. Penso que os tribunais superiores serão acionados para rever a portaria, justamente por conter ilegalidade. No contexto de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, da segurança e da saúde da vítima, inclusive mental, já que pode proporcionar um novo trauma."
Para o professor universitário e membro do Fórum Brasileiro em Segurança Pública Pablo Lira, essa regra pode ser uma forma de possibilitar o acesso ao exame para as vítimas que não têm condições. Apesar disso, o professor destaca que é um mecanismo que acaba burocratizando ainda mais o procedimento do aborto. "E é preciso lembrar que a vítima está em situação de vulnerabilidade. Se decidiu por algo garantido por lei, que é o aborto em caso de estupro, o Estado tem que fornecer condições de realizar a vontade da mulher e não inserir barreiras ou etapas que possam aumentar ainda mais a dor dela. Acho que o ultrassom não seria necessário, ao menos sem conhecer a motivação dessa exigência. Se a vítima decidiu pelo aborto, o Estado deve providenciar que isso seja atendido em condições seguras", afirmou.
Já em relação à notificação à polícia, Lira acredita que existe um aspecto importante e protetivo trazido pela portaria, o de diminuir a impunidade, para que seja identificado o autor do crime de estupro, fazendo com que pague pelo ato cometido.
"O crime de estupro nas estatísticas criminais acaba sendo subnotificado. É um crime em que as vítimas, pelas próprias características da sociedade patriarcal, podem se sentir inibidas de registrar para evitar julgamento social. Porém, na portaria, fica destacada a questão da preservação da identidade da vítima. Então a ideia de inserir o mecanismo é de garantir a identificação do agressor para que não permaneça impune. O profissional da saúde se compromete a relatar o caso para que a investigação tenha início. Nessa perspectiva é algo positivo", iniciou Lira.
No mesmo sentido, para o advogado criminalista e professor de Direito Penal Anderson Burke, a notificação pelos médicos às autoridades policiais é uma exigência importante. "Trata-se de um cruzamento de informações necessário entre o médico e a polícia, para não existir desencontro ou lacuna de informações. Sem essa obrigatoriedade de notificação à autoridade policial, através do médico que realiza o atendimento a uma pessoa na condição de vítima de um crime de estupro, muitos crimes sexuais que possam ter ocorrido ficam ocultos nas cifras negras do direito penal, ou seja, invisíveis e sem a devida apuração por não terem sido noticiados diretamente pela vítima por motivos diversos, circunstância essa que contribui para a impunidade e não prevenção de futuros crimes", ressaltou.
Por outro lado, a socióloga e advogada Layla dos Santos Freitas entende que a exigência é desnecessária. "É um retrocesso, porque está sendo criada mais uma estrutura normativa para embarreirar a autonomia do corpo da mulher, o que pode representar mais um trauma. A necessidade de informar a polícia para então saber se é possível interromper ou não a gravidez é um absurdo. Posso dizer com toda certeza que isso vai inibir que a mulher busque ajuda, e os números continuarão os mesmos", disse.
Demandado pela reportagem, o Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES), por meio do presidente Celso Murad, afirmou que entende a portaria, do modo como foi editada, como subversiva ao processo que visa proteger a privacidade e a proteção à mulher. "Na realidade, toda legislação anterior foi no sentido de protegê-la do constrangimento de passar por um processo agressivo e agora vem uma portaria, que nem é lei, dizendo que a mulher vai ter que descrever o processo de violência a que passou, tendo ainda que preencher documentos sobre isso", disse o médico.
Para Murad, o caminho necessário deveria ser o de a gestante comprovar a gravidez, declarar que foi vítima de estupro e ser esclarecida pelos profissionais como será realizado o procedimento. "Não é questão de defender o aborto, é questão de legislação. Se foi retirado da vítima ou dos responsáveis a obrigatoriedade de registrar esses detalhes do estupro, por que passar para o médico essa função compulsoriamente?", completou.
A imposição de sugerir que a vítima veja a ultrassonografia para reconhecimento do feto, de acordo com o presidente do CRM-ES, é outro absurdo. "A necessidade da vítima é outra. O procedimento já provoca um sofrimento por si só. É algo que só vai fazer retornar o sofrimento a que passou antes e na realidade ninguém está ouvindo a opinião daquela mulher. O ultrassom soa como uma pressão desnecessária, ela já foi fazer o aborto por espontânea vontade. Existem correntes religiosas fazendo pressão e que necessariamente vai em contrário ao que a legislação permite que seja feito. E não cabe ao médico fazer nada isso, ele até pode ter objeção de consciência se não quiser fazer o procedimento, mas não tem que levantar dados para a polícia", concluiu.
Menos de um mês desde o conhecimento público do caso de estupro de uma criança pelo tio, em São Mateus, município do Norte do Estado, e posterior interrupção da gravidez da menina de 10 anos, uma portaria do Ministério da Saúde foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) nesta sexta-feira (28), alterando regras sobre procedimento a ser adotado pelos profissionais da saúde em casos de aborto em razão de violência sexual.
A medida traz exigências que incluem a oferta para que a gestante veja imagens do feto, em ultrassonografia, além da necessidade de preenchimento de um questionário sobre a violência sofrida. Também passará a haver necessidade de que a equipe médica comunique o caso à autoridade policial, independentemente da vontade da vítima de registrar queixa ou identificar o agressor.
O procedimento a ser adotado para a interrupção da gravidez será composto então de quatro fases que deverão ser registradas no formato de termos, arquivados anexos ao prontuário médico, as quais incluem o relato feito pela gestante, diante de dois profissionais da saúde; o parecer do médico com laudos de exames, com aprovação de no mínimo três integrantes da equipe médica sobre o aborto; a assinatura de um termo de responsabilidade pela gestante ou representante legal; e o preenchimento de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, alertando sobre riscos e garantia de sigilo.
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