Desde o início da pandemia da Covid-19, as autoridades em saúde têm afirmado que somente a vacina será capaz de controlar, de maneira mais efetiva, a disseminação da doença e as mortes decorrentes da infecção pelo coronavírus. Pesquisadores de vários países têm se dedicado a encontrar a substância para garantir a imunização, mas o mundo se surpreendeu nesta terça-feira (11) com o registro da primeira vacina anunciado pelo governo russo, de Vladimir Putin. Especialistas, entretanto, afirmam que a população não deve criar expectativas sobre a eficácia - e até segurança - do produto.
Médico imunologista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Daniel de Oliveira Gomes explica que, para a produção de uma vacina, é necessário seguir uma série de etapas e testes que vão assegurar a qualidade do produto, o que leva em média 18 meses. Antes mesmo de testar nas pessoas, são feitos experimentos in vitro, para tentar identificar se a vacina será capaz de estimular células humanas. Com resultados promissores, passa-se à fase experimental em modelos menos complexos, como camundongos, e na sequência, nos mais complexos, como primatas.
Somente, então, começa a ser aplicada nas pessoas, e em três etapas. Na primeira, verifica-se a segurança da vacina, se não causará toxicidade ao organismo do indivíduo. Superada essa fase, a próxima testará a eficácia do produto, ou seja, se será capaz de prevenir a doença para a qual está sendo desenvolvido. Nesses dois momentos, o grupo pesquisado é pequeno para maior controle dos efeitos.
É na terceira fase que a pesquisa é ampliada, abrangendo maior número de pessoas para testar a imunidade em massa, o que pode validar ou não a vacina para ser produzida em larga escala visando à imunização da população. Pelas informações oferecidas até o momento pelo governo russo, essa etapa não foi realizada.
"A fase 3 é a que vai nos dar parâmetro se a vacina vai funcionar em grandes grupos populacionais. Pelo que se levantou até o momento, até pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a Rússia não executou essa fase e, por isso, saiu tão rápido", aponta Daniel Gomes. Há uma suspeita, segundo ele, que o governo russo pretenda realizar a terceira fase já comercialmente.
O professor observa que as críticas que têm sido feitas pelo mundo sobre a vacina referem-se ao fato de que a Rússia não teria respeitado as três etapas cruciais para disponibilização da substância no comércio, e, mais do que isso, não apresentou provas do que foi obtido com o produto.
Para o infectologista e professor da Multivix Rodrigo Leal Silva, o anúncio da Rússia foi precipitado, e até um pouco temerário, diante da fragilidade dos dados divulgados até o momento. O médico também reforça o descumprimento das etapas da pesquisa científica, indispensáveis para garantir a segurança e a eficácia do produto, seja uma vacina, seja um medicamento.
"É necessário cumprir todas as etapas da metodologia científica, e a Rússia anunciou a vacina sem nem ter entrado na fase 3. Nesta fase, 50% dos testes falham", atesta. Rodrigo Silva também acredita que a urgência no registro do produto tem a ver com o desejo do governo Putin ser pioneiro na área. "Isso lembra político em final de mandato que inaugura escola que ainda está no tijolo", compara.
Rodrigo Silva ressalta que a população realmente não deve criar expectativas sobre a imunização se não houver comprovação de eficácia e segurança, seja da vacina russa, seja de outras que vierem a ser apresentadas. "A medicina está cheia de histórias tristes, de sérias consequências, porque não foram observados o rigor científico, a metodologia adequada", pontua.
Questionado, o infectologista cita como exemplo o caso da droga Talidomida, um tranquilizante vendido sem receita na década de 50 porque, segundo a fabricante, era seguro. O produto passou a ser recomendado também para tratar enjoos matinais das gestantes, mas sem que todos os testes tivessem sido feitos. O efeito adverso afetou os bebês, e muitos deles nasceram com malformações.
Doutora em Epidemiologia e professora da Ufes, Ethel Maciel também demonstra a necessidade de cautela diante do anúncio do governo russo, uma vez que não foram apresentados os resultados das pesquisas com a vacina e, portanto, é preciso aguardá-los antes de comemorar a sua chegada.
Contudo, ela pondera que a Rússia nos últimos anos tem investido maciçamente nas universidades e que, se a vacina for reconhecida como segura e eficaz, é consequência do trabalho que aquele país tem realizado.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informou que ainda não foi procurada pelo laboratório russo que desenvolveu a vacina contra o novo coronavírus e que, portanto, não recebeu pedidos para autorização de pesquisa ou registro da vacina.
"Até o momento o laboratório russo responsável pelo desenvolvimento da vacina não apresentou nenhum pedido de autorização de protocolo de pesquisa ou de registro da vacina para a Anvisa", afirmou a agência por meio de nota.
"A análise da Anvisa começa a partir da solicitação do laboratório farmacêutico. Desta forma, não é possível para a Agência fazer qualquer avaliação ou pronunciamento em relação a segurança e eficácia deste produto antes que tenha acesso a dados oficiais apresentados pelo laboratório."
A Anvisa também explica que as vacinas passam por três etapas: desenvolvimento exploratório, pesquisa pré-clínica, pesquisa clínica (uso em humanos) e registro. Após o registro, a vacina é então monitorada no período pós-mercado.
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