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Por que o luto nas mortes por coronavírus é diferente?

Por que o luto nas mortes por coronavírus é diferente?

As restrições para realização de velórios e a necessidade do distanciamento social imposto pela pandemia tornam o momento ainda mais doloroso

Publicado em 31 de maio de 2020 às 08:43

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Cemitério de Itapina, em Colatina, no Noroeste do ES
Enterros não são mais precedidos de longos velórios e despedidas reunindo muitas pessoas. (Reprodução | TV Gazeta Noroeste)

No Espírito Santo, centenas de famílias choram as mortes provocadas pelo coronavírus e enfrentam o difícil momento de maneira que é, em alguns casos, até mais dolorosa. As restrições para a realização de velórios e o distanciamento social decorrente da pandemia impõem um luto sem muito suporte, ao menos presencial, para os que ficam. 

Essa é uma nova realidade, que afeta também os familiares daqueles que morreram por outras doenças, mas no caso da Covid-19 tem outro componente que amplia o sofrimento no luto. Mesmo antes da morte, o isolamento pelo risco de contágio limita a possibilidade de despedida.

"No país, temos a tradição de ficar juntos, chorar e nos despedir de quem morreu. E isso, de forma geral, não está ocorrendo. As modificações dos rituais funerários têm impacto significativo nas famílias. No caso da Covid ainda, as pessoas estão morrendo sozinhas nos hospitais. Os familiares não conseguem encontrar sentido nessa despedida, ou proporcionar uma que possa ser digna para seu ente querido", observa a psicóloga Daniela Reis, especialista em luto.

No trabalho que realiza, Daniela conta que já tem recebido, em busca de apoio, pessoas enlutadas pela perda de parentes para a Covid-19. Mas, além das mortes que acontecem nos hospitais, algumas mortes têm acontecido em casa, diante da família. Essas peculiaridades, segundo a psicóloga, podem gerar ainda mais trauma.

"Importante entender que vivemos uma tragédia sem precedentes e, no caminho de uma experiência de perda, as famílias vão encontrar uma encruzilhada. O luto e o trauma vão se encontrar o tempo todo. Ninguém aprende a viver sem a pessoa que ama. É preciso oferecer orientações adequadas para que essas pessoas não se sintam estranhas no meio do caminho."

PERDA E RESTAURAÇÃO

O luto, explica Daniela, é uma tristeza muito grande, e condição diferente da depressão. É preciso passar por esse processo que, em alguns momentos, se movimenta em direção à perda e, em outros, para a restauração.

"Não é um processo linear. É como uma montanha-russa, muito cheia de emoções. O luto não pode ser negado, e não é visto mais em fases. A gente fala em adaptação. O momento inicial é agudo e pode demorar. Não dá para exigir das pessoas que voltem logo ao "normal". As famílias levam de dois a três anos para integrar uma perda. E o primeiro ano é particularmente difícil. A Covid traz uma dificuldade adicional por ser provocada por um vírus cuja transmissão não se sabe como ocorreu e pode trazer um elemento intenso de culpa", aponta. 

Capelã hospitalar paliativista e em desastres,  Elizabeth Maria de Assis Silva Pavão oferece assistência espiritual voluntária em hospitais da Grande Vitória e avalia que é preciso criar espaço para dar lugar e voz à pessoa enlutada, em tempos de isolamento social. 

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Acolher seu silêncio e oferecer o ouvido e a alma desarmados, sem discursos prontos. Ter presença enfática mesmo não estando perto, validando a dor de quem sofre com atenção, compaixão, animando a fé sem frases feitas e julgamento

Elizabeth Pavão
Capelã
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Esse cuidado, segundo Elizabeth Pavão, pode ser no simples ato de entregar um lanche pronto, enviar uma música que fortalece a alma, orar junto, encaminhar uma poesia, um texto sagrado, um vídeo, oferecer momentos de relaxamento durante os turnos extenuantes de trabalho. A capelã também sugere o estímulo a atividades de cuidado pessoal e com o ambiente no dia a dia, como jardinagem e costura, ou mesmo participação em ações que contribuem para a comunidade, a exemplo de produção de máscaras.

"Cuidar nestas circunstâncias demanda atenção de todos os que estão à volta. Temos recursos em diferentes níveis e quantidades e, por isso, todos são chamados a participar da construção de um novo jeito de viver. Requer responsabilidade no acolhimento e comprometimento no caminhar em sociedade. É o vizinho mais próximo cuidando do seu vizinho, um novo olhar sobre ser e pertencer que, na fragilidade da vida, mostra sua força e pode salvar muita gente", argumenta Elizabeth Pavão, acrescentando que, nesse contexto de apoio, não se deve esquecer as orientações das autoridades sanitárias para evitar a transmissão do vírus.

SUPORTE EMOCIONAL

O grande número de mortes por Covid - o Espírito Santo já alcançou a marca de 511 óbitos - é também um fator que confere maior peso ao luto de seus familiares, e o suporte emocional de que precisam torna-se mais complexo. 

"Numa situação de emergência e desastres, como a das chuvas do início do ano, a equipe de apoio entra, faz o seu trabalho e vai embora, deixando uma estrutura de assistência organizada. Agora, o trabalho não acaba, e parece que só piora. É uma situação desesperadora para todos os envolvidos. É difícil para quem tem que ficar em casa, para quem tem que trabalhar, tem muita gente passando dificuldades diversas, inclusive na busca de assistência médica integral. Um problema que temos visto é a dificuldade de acesso aos serviços de saúde mental. Toda a rede está fragilizada. Se um enlutado precisar de atendimento, não tem onde procurar", afirma  Daniela Reis. 

Ela acrescenta que nem todo enlutado vai precisar de psicólogo, muito menos medicação, mas é necessário que haja uma rede de apoio e acolhimento. 

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Valem missa e culto via redes sociais, encontros virtuais, cortejos de carro visitando os lugares que a pessoa gostava, valem mensagens por vídeo. Muitas vezes, o que o enlutado precisa é apenas de uma orientação em relação ao processo de luto

Daniela Reis
Psicóloga  especialista em luto
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A capelã Elizabeth Pavão finaliza afirmando que, em tempos de pandemia e amplificação do luto pelas inúmeras mortes, "todos estamos sendo desafiados à quebra de paradigmas, à resiliência, à avaliação e administração dos nossos recursos físicos, emocionais, espirituais, relacionais, culturais, financeiros, dentre outros, à criatividade para potencializarmos a vida através do cuidado" consigo e com o outro.

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