O sistema de reconhecimento facial de câmeras de vigilância em vias públicas, como o que está sendo implantado em Vitória, divide opiniões. Em diversos locais do mundo, a tecnologia levanta questões éticas sobre o viés racial das identificações, além de suscitar o debate a respeito da privacidade dos cidadãos.
No caso da capital do Espírito Santo, estão previstos 150 pontos de monitoramento com reconhecimento facial até março deste ano. O supercomputador e o programa custaram juntos R$ 15 milhões aos cofres da prefeitura. A ideia é que as câmeras identifiquem pessoas foragidas, ou seja, que têm mandados de prisão expedidos pela Justiça.
Antes de entrar nas questões éticas e jurídicas a respeito da tecnologia, é importante entender como ela funciona. O professor do Ifes e doutor em eletrônica e computação Luiz Alberto Pinto explica que há várias maneiras de identificar uma pessoa através da análise de imagens por algoritmos.
A mais utilizada atualmente procura informações no rosto dos indivíduos e compara com um banco de dados de fotos previamente selecionadas.
“Existe mais de uma forma (de identificar as pessoas). A que tem sido mais praticada é a análise da distância entre dois pontos específicos do rosto: de um lado a outro do queixo, do queixo até o meio da testa etc. É um conjunto de pontos que teoricamente podem ser associados a uma só pessoa”, diz.
Ele aponta que os melhores sistemas fabricados atualmente têm taxas de acerto próximas a 95%, ou seja, a cada 100 tentativas, acertam a comparação entre as duas imagens em 95 delas.
Contudo, ele explica que há uma série de limitações a esse tipo de tecnologia, que fazem com que essa taxa seja reduzida.
A primeira delas é a qualidade da imagem da câmera de monitoramento. Em geral, aparelhos instalados em vias públicas não têm boa resolução, pelo risco de serem furtados.
Em seguida há questões ambientais: a iluminação do local onde a câmera está posicionada pode influenciar negativamente na identificação das pessoas. Há ainda que se considerar o ângulo de visão do equipamento, já que o reconhecimento só é possível se a pessoa for filmada de frente.
“Se a finalidade for identificar pessoas evadidas, quanto maior a quantidade de imagens capturadas de pessoas que transitam por um determinado local, maior a possibilidade de identificar alguém procurado”, afirma. Isso implica avaliar o rosto de todas as pessoas que passam na frente das câmeras.
É essa característica - o monitoramento da população em geral - que preocupa alguns especialistas e membros de organizações civis. Eles temem que, sob o pretexto de aumentar a segurança, a privacidade dos cidadãos seja violada.
“O que estão fazendo é colocar a sociedade sob vigilância constante como se isso resolvesse o problema da segurança. E não resolve. Está provado que medidas desde o aumento do efetivo até a compra de equipamentos não reduz a violência. A violência migra e se adapta”, aponta o professor em Direito Penal e criminologia Lucas Neto.
Ele diz que o sistema de reconhecimento facial nas ruas opõe dois direitos fundamentais dos brasileiros. De um lado há o direito à privacidade e à imagem dos cidadãos. Do outro, há o direito à segurança.
Já o advogado da área criminal Ludgero Liberato discorda. Para ele, não há proteção ampla da intimidade quando a pessoa está em um local público.
“Essa proteção está voltada para a vida privada, que não está acessível para outras pessoas. O que uma câmera na rua vai ver, é o que outras pessoas que estão passando pelo local vão ver também”, aponta.
Ele lembra ainda que, atualmente, mesmo câmeras de locais privados (na porta de lojas ou condomínios) já são usadas pela polícia para apurar crimes.
Liberato argumenta que o uso da tecnologia economiza recursos financeiros e humanos, já que permite acelerar a identificação das pessoas sem precisar de vários agentes públicos nessa tarefa.
Ele pondera, porém, que essa identificação pelas câmeras tem que ser uma ferramenta inicial de apuração. “Havendo dúvida pela identidade, essa pessoa deve ser submetida a outros mecanismos de identificação, até por digital. Esse apontamento inicial que a tecnologia vai fazer não torna inútil a utilização de outro mecanismo”, afirma.
Estudos diversos apontaram que esses sistemas, apesar de parecerem “impessoais”, podem reproduzir vieses de gênero e raça. Isso significa que eles erram mais na identificação de pessoas negras, principalmente mulheres.
Uma pesquisa de 2018 do projeto Gender Shades verificou a precisão do reconhecimento facial em quatro diferentes categorias: mulheres de pele escura, homens de pele escura, mulheres de pele clara e homens de pele clara.
Ele mostrou que, quando o sistema era apresentado a imagens de homens brancos, só errava a identificação facial em 0,8% das vezes. Já no caso das mulheres negras, a taxa de erro era de 34,7%.
Os pesquisadores explicaram no estudo que, para que o sistema “aprenda” a reconhecer rostos em imagens, é preciso alimentá-lo com fotos de pessoas reais. Porém, os principais sistemas atuais foram treinados com pessoas brancas, o que dificulta a percepção de outras raças.
Durante o anúncio oficial do sistema de monitoramento por reconhecimento facial de Vitória, o prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos) afirmou que o objetivo inicial é encontrar bandidos foragidos. Mas acrescentou que, no futuro, outras imagens, como de pessoas desaparecidas, podem integrar a base de dados.
De toda forma, ele esclareceu que só serão utilizadas fotos a partir de autorização da Justiça.
Questionado por A Gazeta se a população havia sido consultada a respeito das questões de privacidade, ele disse apenas que as imagens já são capturadas pelo município.
“Nós só estamos inserindo uma solução tecnológica. As imagens já estavam no sistema. Tudo funciona com base na Lei Geral de Proteção de Dados. O que estamos trazendo é uma tecnologia para tratar as imagens”, afirmou.
O subsecretário de Tecnologia da Informação da prefeitura, Olavo Venturim Caldas, ressaltou que toda tecnologia nova deve ser implantada com cuidado.
“A gente já ouve falar de pessoas que são confundidas com um assaltante, por exemplo. A tecnologia não está 100% isenta de cometer um erro. Por isso a implementação tem que ser cuidadosa, criando processos e procedimentos para, caso ocorra um erro, não haja prejuízo ao cidadão”, diz.
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