Em 2018, Bruno Nascimento, de 25 anos, foi aprovado e ingressou no curso de Farmácia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) pelo regime de cota racial. Já em 2024, ele conta que teve sua matrícula por cota negada em Medicina pela mesma instituição com a justificativa de que não foram encontradas "características que o identifiquem como pessoa negra".
“Realizei o Enem no último ano e agora tentei minha matrícula pelo Sisu. Passei na Ufes pela mesma modalidade de 2018, sendo baixa renda e PPI (candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas). A primeira matrícula foi da mesma maneira, passando pela banca racial sem grandes problemas. Agora, negaram a matrícula sendo que sou a mesma pessoa”, indigna-se o estudante.
Bruno afirma que recorreu à Pró-Reitoria de Graduação da Ufes para resolver a situação, onde foi instruído a aguardar novas avaliações da universidade, sem prazo para a decisão. “Fiz todas as análises necessárias pouco antes do carnaval e, na última terça-feira (20), fiz outra análise, que também foi negada”, disse Bruno.
Diante da nova recusa, o candidato entrou com dois recursos na última quarta-feira (21): um à Comissão de Validação de Autodeclaração e outro ao Conselho Universitário.
No início deste mês de fevereiro, a própria Ufes emitiu um documento atestando que Bruno era aluno cotista dentro da modalidade PPI (documento abaixo).
Procurada pela reportagem de A Gazeta sobre a situação de Bruno, a Ufes informou que, enquanto o processo do Sisu 2024 estiver em andamento, a equipe da Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) da instituição não vai se manifestar sobre este ou qualquer outro caso específico do processo seletivo.
A universidade acrescentou que, desde a implementação do sistema de reserva de vagas, a Ufes, assim como as demais universidades, vem aperfeiçoando o processo. "Se antes bastava a autodeclaração, agora existe um processo misto de heteroidentificação, em que a autodeclaração é validada ou não por uma comissão avaliadora", diz, em nota. Esta comissão foi instituída em 2017, antes do ingresso de Bruno no curso de Farmácia.
A política de cota racial nas universidades federais brasileiras foi instituída em 2012, com a Lei 12.711. como forma de combate ao racismo e de reparação histórica das desigualdades etnico-raciais existentes no Brasil. Para garantir que o acesso às vagas destinadas às populações negra (pretos e pardos) e indígena cumpram seu objetivo é que foram criadas comissões de verificação de autodeclaração.
Na Ufes, a Comissão de Validação de Autodeclaração começou a atuar no primeiro semestre letivo de 2017. Atualmente, conta com nove membros efetivos, entre servidores técnicos e docentes, doutores e pesquisadores da universidade. Há também uma outra comissão, que analisa os recursos, composta por três membros efetivos e dois suplentes.
De acordo com a Ufes, a avaliação étnica-racial para candidatos pretos e pardos é realizada de maneira presencial pela comissão, considerando única e exclusivamente o fenótipo negro (preto ou pardo): predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e os aspectos faciais que, combinados ou não, permitem validar ou invalidar a autodeclaração.
"Esse processo visa a coibir eventual destinação de vagas reservadas para quem não é alvo da política social, considerando possíveis fraudes, bem como declarações equivocadas devido à ausência de compreensão das questões raciais", informou a universidade, na mesma nota.
Segundo Loyane Lô, secretária geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Ufes, as bancas de avaliação da instituição estão acumulando reclamações de alunos, pelos mais variados motivos.
Em 2020, outro caso curioso chamou a atenção no Espírito Santo: duas irmãs gêmeas tentaram o ingresso na Ufes pelo sistema de cotas, mas apenas uma delas conseguiu a vaga na modalidade. A outra, mesmo sendo idêntica à irmã, teve o pedido indeferido.
Além dos problemas com a banca de heteroidentificação, foi apontado que também existem problemas com relação à banca de avaliação para pessoas com deficiência (PCD).
"Outros estudantes têm nos procurado para que essas irregularidades sejam constatadas. Temos estudantes sofrendo capacitismo e tendo problema com situações raciais. Em relação aos casos de capacitismo, será reformulada uma resolução para fazer as correções, mas isso ainda não está definido", explica Loyane.
"Nesse caso em específico [de Bruno], é necessário observar algumas questões: ou houve um erro da banca em 2018 para que ele passasse como uma pessoa não branca, ou há erro agora, em 2024, para que ele esteja sendo barrado, já que ele passou pelas mesmas avaliações do primeiro curso", aponta Loyane, que complementa: "O DCE defende copiosamente a existência da banca de heteroidentificação, porém, nós queremos que ela exista com efetividade, pois sabemos dos avanços significativos na educação desde sua criação".
Segundo a secretária, "a organização das bancas avaliadoras apresentam lacunas de acordo com as denúncias de candidatos, e o montante de reclamações aumenta cada vez mais".
Ela recomenda que os alunos que se sintam lesados por supostos erros das bancas procurem os canais disponíveis para formalização das denúncias, sendo que a Ouvidoria da Ufes deve ser o primeiro órgão a ser contatado.
Em 2020, Leidimar Bitencourt Machado realizou a inscrição pelo sistema de cotas, assim como sua irmã gêmea. Mas apenas Leidimar teve o pedido negado devido à ausência de características fenotípicas de pessoa negra (preto ou pardo).
No entanto, como divulgado pelo Ministério Público Federal (MPF), Leidimar e sua irmã são gêmeas univitelinas, ou seja, geneticamente idênticas. A irmã dela teve o pedido aceito pela mesma comissão avaliadora em entrevista presencial, sendo concedido o direito de matrícula.
Na ocasião, como divulgado por A Gazeta, o MPF contestou a decisão da Ufes e deu parecer favorável à aluna prejudicada. “Não obstante a autodeclaração não ser soberana, é sabido que o procedimento de heteroidentificação só deve prevalecer quando a autodeclaração for cabalmente incabível, o que não se verifica no presente caso. O caso sob análise revela diversos motivos para que a autodeclaração prevaleça”, como pontuou o procurador da República Carlos Vinicius Cabeleira, autor da manifestação em 2020.
Ainda assim, como divulgado pelo MPF nesta quarta-feira (22), o mandado de segurança foi indeferido pela Justiça e a decisão transitou em julgado desde 2020, ou seja, o pedido foi negado pelo juiz responsável pelo caso.
No caso de Bruno, o MPF alega não ter sido procurado pelo estudante, mas se colocou à disposição caso o jovem queira fazer uma representação on-line por meio do site www.mpf.mp.br/mpfservicos.
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