Fontes de renda de mais de 80 famílias e fundamentais para a produção do utensílio que abriga dois dos mais tradicionais pratos do Espírito Santo — a moqueca e a torta capixabas —, a extração do barro no Vale do Mulembá e a confecção da panela podem estar ameaçadas com a construção de um loteamento no bairro Joana D’Arc, em Vitória.
Essa preocupação é da Associação das Paneleiras de Goiabeiras. O ofício do grupo é considerado o primeiro patrimônio imaterial reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Em análise, o Iphan identificou que a área prevista para o loteamento incide sobre uma importante região usada para a extração e o transporte da argila até o Galpão das Paneleiras, em Goiabeiras. Por causa disso, o órgão cobrou do empreendimento um Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Imaterial (Raipi).
O documento foi entregue em novembro de 2023 ao instituto, pouco antes da apresentação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) à comunidade, e considerado não passível de aprovação. Parecer técnico emitido pelo Iphan no último dia 12 de janeiro considerou que há algumas complementações necessárias para avaliar o impacto sobre o patrimônio imaterial.
“Neste momento, aguarda-se resposta do empreendimento quanto às complementações solicitadas, e seguiremos mantendo a interlocução direta com as detentoras no tocante à preocupação com este processo de grande complexidade para com o ofício das paneleiras de Goiabeiras”, informou o órgão, por nota.
No parecer técnico, o Iphan aponta algumas preocupações e pede ainda que, no relatório complementar, sejam enumerados e descritos cada um dos impactos promovidos pelo empreendimento no bem cultural, apontando desenhos futuros com propostas de medidas de mitigação e compensação.
O documento aponta ainda a falta de uma análise geoambiental da localidade. O Iphan diz que o relatório não indica dados como a proximidade com o manguezal, o relevo e material de origem geomorfológica e as condições pedológicas que permitem a presença do barro, entre outras informações.
Outro pedido feito foi de inclusão de informações detalhadas sobre planejamento e uso do solo na área do empreendimento, a fim de prever maior ou menor proximidade com o barreiro. E também solicita análise sobre a acessibilidade das vias de acesso entre a Lagoa Mulembá e o barreiro, pois o relatório menciona apenas a via central.
O superintendente do Iphan no Espírito Santo, Joubert Jantorno Filho, explica que o relatório foi solicitado para que o órgão avalie como o empreendimento pode afetar a jazida de retirada do barro, diretamente relacionado ao bem imaterial. Segundo ele, o Iphan vai apontar as ações para que não ocorram esses impactos. Há uma série de medidas no relatório orientando tanto o empreendimento como a gestão pública.
O empreendimento anunciado está sendo considerado um novo bairro planejado e fica na região da antiga pedreira Rio Doce, próximo ao Vale do Mulembá, onde a argila para confecção das panelas é extraída há mais de 400 anos.
Segundo Jantorno, o empreendimento, por enquanto, não tem previsão de impacto diretamente na jazida, mas o órgão está acompanhando a questão, para garantir também que as obras não impactem as vias de acesso dos tiradores de barro.
"Temos preocupação para que não ocorra gentrificação, que é o processo de mudar o caráter de um bairro através do fluxo de residentes e empresas de maior poder econômico. Não pode haver impedimento e nem constrangimento para que essas pessoas que sobrevivem dessa atividade econômica acessem as ruas que vão chegar até o ambiente da retirada do bairro", detalha.
O Iphan também vai cobrar da Cesan explicação sobre a capacidade da estação de tratamento de esgoto que atende a região. O objetivo é entender se o equipamento vai ter condição de atender ao aumento do número de moradores com o loteamento, principalmente por causa da limitação de espaço para uma possível ampliação.
Segundo Jantorno, o risco nesse caso é de um transbordamento do material, o que pode acabar afetando diretamente a jazida, ou seja, contaminando a área de onde o barro para fazer as panelas é retirado.
Berenicia Nascimento, secretária da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, conta que 80 famílias sobrevivem do barro retirado do Vale do Mulembá. De lá, são extraídos, por mês, cinco caçambas. Em cada uma delas há 800 bolas e cada bola de barro tem 18 quilos. E a partir desse barro são feitas as panelas.
Segundo a Nazca, responsável pelo projeto, o empreendimento em questão é um loteamento que está em fase de legalização junto aos órgãos competentes. A empresa diz que a área onde o empreendimento está sendo desenvolvido é particular, sem divisa com os limites da região de extração das paneleiras.
"Ressaltamos ainda que o loteamento encontra-se em fase de execução de EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança), momento no qual se discute com as comunidades e órgãos competentes várias vertentes como melhorias no sistema viário e criação de áreas de interesse pública e ambientais."
A empresa reforçou ainda que todas as exigências legais e recomendações serão atendidas durante esse processo. No caso em questão, foi emitido um parecer solicitando complementação do relatório apresentado.
A Secretaria de Desenvolvimento da Cidade e Habitação (Sedec) informa que o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) foi apresentado em audiência pública em 07/12/2023, na Casa do Cidadão. As comunidades de Joana D'Arc e Resistência se fizeram presentes, com excelentes contribuições ao estudo.
O processo participativo foi ampliado em consulta pública on-line. Os técnicos do município vêm orientando a consultoria do EIV sobre adequação e acolhimento das manifestações. O resultado será reapresentado às comunidades pelo empreendedor antes de prosseguir para análise pelo Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU).
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