"O Francisco deve estar contando muitas histórias sobre os planetas, as estrelas. E deve estar fazendo muita bagunça". Com as aulas suspensas por conta da pandemia de coronavírus, a professora Kellen tentou imaginar o que cada um dos seus alunos, entre eles o Francisco - de 2 anos e 11 meses -, têm feito durante a quarentena.
O esforço da professora, que gravou um vídeo para os alunos e mostrou até fotos da infância dela, é para tentar manter o vínculo com as crianças. Para as creches particulares, que atendem crianças muito pequenas, esse têm sido o maior desafio.
Para os pequenos de até 6 anos, aulas on-line não são tão eficazes e o momento têm exigido criatividade das instituições de ensino infantil. Além de vídeos, muitas creches têm enviado materiais como tinta, papéis coloridos e algumas atividades para serem feitas em casa. No esforço para manter os contratos, algumas têm oferecido aos pais descontos de até 50% na mensalidade.
"A professora fez um vídeo lindo, falando de cada aluno, logo na primeira semana. Os professores de todas as atividades, musica, capoeira, artes, inglês, fizeram videos. Montaram um kit de produtos com tinta, argila, giz de cera, de acordo com a idade de cada aluno. Eles mandam o cardápio como sugestão do que ofertar para a criança no dia e estão compartilhando com os pais algumas receitas simples de fazer em casa. E deram um desconto de 25% a partir da próxima mensalidade", conta a farmacêutica Josiane Della Valentina, mãe do Francisco.
Francisco é aluno da Moinho de Invento, escola de educação infantil que atende desde bebês até crianças de 5 anos de idade, em Vitória. Coordenadora pedagógica e sócia-proprietária da creche, Celeste Fabris conta que a escola optou por não demitir os funcionários e tem se esforçado para manter contato, quase individual, com cada família.
"A entrada da escola na casa é um complicador. Não pode encher de tarefa. A criança pequena é pautada no vínculo, precisa de ver e tocar, fica angustiada estando impossibilitada de sair de casa. As professoras estão trabalhando o dia inteiro, inclusive com carga horaria extra. O mais difícil é criar uma forma de se comunicar com as crianças, estabelecer um vinculo cotidiano. É um trabalho quase que individual, respondendo os áudios e mensagens que chegam de cada aluno. Hoje, por exemplo, uma mandou áudio dizendo que estava com saudade do peixinho da escola e então mandamos a receita do peixe, para que os pais possam fazer em casa", conta.
Em abril, a mensalidade foi cobrada de forma integral, mas para o próximo mês a creche já definiu que dará 25% de desconto. A redução foi calculada com base na redução de algumas despesas e de forma a manter todo o quadro de funcionários.
"Optamos por não ter demissão nenhuma, redução de nada. Estamos projetando 25% de desconto para o mês de maio. Tivemos uma redução inegável de alimentação, da conta de luz e de outros gastos cotidianos. Mas o maior peso é a folha de pagamento, o aluguel. Foi tudo muito calculado, para não ter programa de demissão. Prioridade é manter os profissionais. Quando tudo acabar, o aluno volta e precisa encontrar a mesma estrutura que ele deixou", argumentou Celeste.
O mesmo foi feito pelo Centro Educacional Viver, que optou por manter um diálogo de aproximação, conexão e afetividade com as famílias através de plataforma digital com atendimentos individuais e coletivos. A escola também já estuda um desconto nas próximas mensalidades.
"Nossos alunos tem idade de 4 meses a 6 anos, idade essa que requer um atendimento singular e sensível. Mesmo a distância, os professores têm mantido conectados com os alunos por meio de vídeos, lives, encontros diários na plataforma digital, feito kits com material para retirada na escola com períodos quinzenais. A escola vem dialogando com os pais, escutando suas expectativas e necessidades, sabendo que cada caso é um caso. Estamos fazendo um estudo minucioso dos serviços não utilizados, com muito critério e prudência, buscando um equilíbrio entre as partes envolvidas, para poder repassar aos pais o nosso melhor", afirmou Cândida Pereira, diretora-pedagógica e mantenedora da Viver.
Na Idade Criativa, a saída encontrada foi manter a filosofia de projetos da escola, mas dessa vez com projetos voltados para pais e filhos. Tudo sem cobrança, para ser feito no tempo que cada família desejar e tiver disponível.
"Bem no início, dias antes da escola fechar, criamos um material batizado de 'eu na minha casa', que é um livro em que a criança vai desenhar, com a ajuda dos pais, os brinquedos dela, o prato do almoço, a casa, um filme que ela gosta. Esse material vai funcionar como uma memória desse momento. E junto dele entregamos materiais de arte. Depois passamos a manter contato com as famílias para saber como estava a rotina de cada um. E agora criamos um projeto específico para o grupo 5, que são as crianças que estão em fase de alfabetização. E um outro projeto para as turmas do berçário até o grupo 4, focado em histórias", contou Alessandra Salazar, diretora-pedagógica da escola.
Para maio, a escola também vai adotar desconto na mensalidade. No entanto, Alessandra preferiu não revelar o valor do desconto. "Temos uma pessoa que conversa diretamente com as família, de acordo com as demandas de cada um. Adotamos um valor de desconto para a escola toda, e temos analisado alguns casos de forma individual", afirmou.
Já na Mundo Ciranda, a saída encontrada foi aderir à Medida Provisória (MP 936/2020) e suspender o contrato dos funcionários, de forma a garantir um desconto maior na mensalidade para os pais.
"Fiz uma enquete com os pais para saber se eles preferiam que esses dias fossem compensados de alguma forma depois ou um desconto agora na mensalidade. 70% votou pelo desconto e aí eu decidi utilizar as ferramentas do governo de suspensão dos contratos de trabalho, e renegociar os meus custo com aluguel e fornecedores. Primeiro dei 15 dias de férias, e essa semana suspendi o contrato de todo mundo", disse Breno Prados, proprietário da creche.
Prados é também o representante da Educação Infantil do Sindicato das Empresas Particulares de Ensino do Espírito Santo (Sinepe) e afirma que, apesar de muitas escolas oferecerem desconto, o valor não é uniforme.
"Cada escola tem suas particularidades no serviço ofertado, que faz o preço variar muito de uma creche para outra. Se oferta ou não alimentação, se inclui banho ou não. Cada uma dá desconto conforme a sua particularidade de preço. A maioria está fazendo conta para ver quais são os descontos que podem ofertar. Uma atividade substitutiva à presencial não existe. As instituições que estão conseguindo fazer alguma coisa têm a intenção de manter o laço afetivo, se manter presente na vida da criança e da família", argumenta.
De acordo com o presidente do Sinepe, Moacir Lellis, não é possível estabelecer um desconto linear para todas as escolas de educação infantil. Por isso, o sindicato defende que os pais tenham uma conversa franca com a escola.
"Se a escola não estiver fornecendo alimentação, por exemplo, tem que abater esse valor na mensalidade. Mas com relação a pessoal, que em creche é em torno de 70% dos custos, não tem muito o que fazer, não tem como reduzir tanto. O pai precisa conversar com escola, para ser analisado caso a caso. É um momento novo, nunca passamos por isso", defende Lellis.
Não há previsão no Código de Defesa do Consumidor, de forma clara, sobre dar desconto na mensalidade nessas situações. Segundo o advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) , Igor Britto, a lei não vai responder isso de forma tão segura, porque nunca houve uma situação em que as escolas e creches fossem obrigadas a não funcionar.
"Tudo está diretamente relacionado com a capacidade e o esforço da escola de conseguir prestar o serviço de forma alternativa. Não dá para esperar que os pais paguem por mensalidades quando não há prestação de serviço nem de forma alternativa, por aula remotas e uso de tecnologias. No caso das creches, não faz sentido prestar o serviço desta forma e fica muito difícil convencer os consumidores a pagar integralmente as mensalidades. As instituições precisam reconhecer a necessidade de arcar com os prejuízos", explica Britto.
Ainda de acordo com o advogado do Idec, os pais podem escolher romper o contrato com a escola e rematricular o filho novamente depois, sem ter qualquer prejuízo com isso.
"Fica a escolha de cada pai se ele vai poder continuar arcando com essas mensalidades dentro da sua realidade financeira. Seja por uma postura de solidariedade com a escola ou porque confia que será compensado com serviços adicionais, extras ou outros benefícios no decorrer do ano letivo. Caso contrário, se escola não tem como oferecer o serviço de forma alternativa, ele vai ter total condições de pedir a rescisão do contrato, sem pagamento de multa, durante o não funcionamento da creche, e rematricular essa criança no futuro", conclui.
Pais de alunos de escolas particulares poderão ter direito a uma mensalidade mais barata nos meses seguintes à pandemia do novo coronavírus. Essa é a avaliação da promotora de Justiça Sandra Lengruber, da Promotoria do Consumidor do Ministério Público do Espírito Santo (MPES).
A promotora destaca que, neste momento, a orientação é que os pais continuem pagando as mensalidades normalmente. Porém, passada a pandemia, se for observado que as escolas tiveram um custo menor do que o habitual, a diferença poderá ser devolvida aos pais ou abatida nas mensalidades futuras.
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