Em meio à pandemia do novo coronavírus, muitos empreendedores precisam recorrer a linhas de crédito para conseguir manter suas empresas funcionando. Porém, mesmo com as modalidades disponíveis há quase dois meses, muitas vezes, esse dinheiro não chegou a quem precisava. No Espírito Santo, por exemplo, muitos empresários tentam conseguir ajuda financeira de linhas regionais e nacionais, mas o resultado tem sido o mesmo: demora, falta de informação e burocracia.
Um comerciante da Serra, que preferiu não se identificar, explicou a situação em que ele e o seu negócio, aberto há 10 anos, enfrentam. Ele conta que tem 10 funcionários que o perguntam porque ele não pega o crédito que foi anunciado pelos governos estadual e federal. A resposta, segundo o comerciante, está no número de obstáculos que ele tem que enfrentar para conseguir ter aprovação do crédito.
Além disso, o comerciante explica que a cobrança da Taxa de Abertura de Crédito (TAC) é outro problema. Muitos bancos a cobram para conceder financiamento ou empréstimo. Mas, por estar proibida por lei desde 30 de abril de 2008, as empresas costumam usar outro nome para escapar da fiscalização.
"Em um banco me cobraram R$ 1,5 mil de TAC, para analisar as minhas garantias. Para manter a empresa funcionado tentei a linha de folha de pagamento da Caixa, mas pedem garantia de 100% do valor a ser financiado. Também tentei a de Crédito Emergencial do Bandes/Banestes, que também me exigia garantia de 100% do valor. Se eu tivesse esse dinheiro não precisava de empréstimo", conta.
Os bancos estaduais, Bandes e Banestes, criaram três linhas emergenciais para socorrer as empresas afetadas pela pandemia do coronavírus. Todas começaram a operar, porém, duas delas com certa demora. Do total de R$ 484 milhões em crédito que seriam concedidos às empresas, apenas R$ 175,76 milhões foram repassados a elas.
A primeira linha foi anunciada no dia 18 de março, mas só começou a ser paga no início de abril. A modalidade de Crédito Emergencial Banestes/Bandes oferece taxas a partir de 0,32% a. m., mais CDI, carência de até seis meses e prazo de pagamento de até 48 meses. De acordo com as projeções divulgadas na época, pelo Banestes seriam emprestados R$ 250 milhões e pelo Bandes outros R$ 134 milhões.
Segundo o presidente do Banestes, José Amarildo Casagrande, o banco já liberou R$ 127 milhões em recursos, para 1.162 empresas, com tíquete médio de R$ 109 mil. Além disso, estão em análise outros R$ 194 milhões, que correspondem a mais 892 propostas de empresas/setor industrial, de diferentes portes.
Já do total de R$ 134 milhões em recursos do Bandes, até o dia 20 de maio, R$ 46,5 milhões deles estavam em análise e outros R$ 87,5 mi foram contratados.
Já as linhas de Microcrédito Emergencial Covid-19 disponíveis com aval do governo estadual eram as mais aguardadas pelos empreendedores. Elas são para crédito de até R$ 5 mil sem juros ou Capital de Giro Emergencial Covid-19, sendo que o valor de contratação é de até R$ 31,5 mil.
Ao todo o governo prometeu emprestar R$ 100 milhões para mais de 300 mil negócios no Espírito Santo. As linhas foram anunciadas no dia 14 de abril, mas os empréstimos só começaram a ser realizados na última sexta-feira (22), mais de um mês depois.
A linha de crédito de até R$ 5 mil sem juros tem como objetivo beneficiar artesãos, representantes da Economia Solidária, micro e pequenos empreendedores (MEIs) e trabalhadores autônomos. A expectativa do governo era que 220 mil profissionais fossem beneficiados. Eles terão seis meses de carência, com prazo de 24 meses para pagamentos, e a contratação será operada pelo Banestes.
Casagrande explica que o prazo não entrou em operação logo após a aprovação da lei devido a necessidade de adequações. Mas que em menos de uma semana em vigor a medida já atendeu 450 empresas - contratos aprovados até a manhã desta quinta-feira - no valor de R$ 2,2 milhões.
Ao todo, foram apresentadas 9.470 propostas sendo que 5.269 estão aptas a continuar e outras 1,2 mil estão ainda em análise. Já outras 3 propostas foram descartadas por restrições. "Muitas pessoas que procuram o empréstimo não fazem parte do público-alvo. Outras também não apresentam a documentação exigida. Alguns empreendedores são muito bons no trabalho, mas não entende os caminhos para os empréstimos. A Aderes [Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas] tem contribuído para uma análise preliminar dos pedidos para que o Banestes possa trabalhar com mais agilidade na liberação dos recursos ", explicou.
Uma das pessoas que aguardam ser contempladas por essa linha é a microempresária Marcele Alvarenga. Ela tem uma empresa de comunicação desde 2013 e conta que, desde que a crise do coronavírus começou, já perdeu dois clientes. "A minha ideia era pegar o empréstimo de até R$ 5 mil para conseguir ter um tempo de respiro maior, caso perca ainda mais clientes. O dinheiro seria usado para pagar as contas do dia a dia da empresa", explica.
Segundo ela, a demora entre o anúncio da linha e o início da operação dela foi a pior parte. "Estou procurando informações sobre a linha de crédito desde as primeiras notícias. Primeiro eles fizeram o anúncio e encheram a gente de expectativa. Fui a uma agente do NossoCrédito que me passou as informações que eles precisavam, mas sem data para conseguir o crédito. Agora estou esperando", comenta.
A outra linha anunciada foi a de Capital de Giro Emergencial Covid-19, de até R$ 31,5 mil, que é destinada exclusivamente para o financiamento de até três folhas de pagamento de empresas. Ela tem taxa de juros atrelada a Selic, hoje em 3%, carência de até seis meses sem cobrança de encargos e prazo para pagar de até 48 meses.
Casagrande explica que para essa linha foram atendidas 25 empresas, num total de R$ 260 mil. "O valor é baixo porque o recurso é liberado apenas no pagamento da folha de salários, o que ocorre geralmente no dia 5 do mês. No início de junho, teremos um valor considerável de recursos liberados. Outro motivo de a quantia até agora contemplada não ser tão alta é acabamos atendendo muitas empresas em outras linhas de crédito", acrescenta.
Nesta quinta-feira, a Findes enviou um ofício ao Banestes e à Secretaria de Estado de Desenvolvimento, solicitando informações sobre o Fundo de Aval Bandes e as linhas emergenciais de crédito anunciadas pelo governo estadual. A instituição pediu informações sobre a quantidade de propostas solicitadas, os requerimentos em análise e o montante de empréstimos solicitados , os números de contratos e valores firmados até agora.
Levantamento preliminar do Núcleo de Acesso ao Crédito da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) constatou que das 12 mil solicitações para a linha de crédito de capital de giro, de R$ 5 mil, voltada para os microempreendedores individuais, no máximo 300 pedidos foram liberados. O número estimado pela organização é um pouco maior do que os dados divulgados pelo Banestes.
Segundo a instituição que representa a classe empresarial, o serviço de financiamento para folha de pagamento, no valor máximo de R$ 31,5 mil, praticamente não entrou em operação.
Nosso objetivo é apoiar os industriais na obtenção dos recursos e também colaborar com os bancos, no atendimento na rede bancária, para que as instituições financeiras possam receber o cliente empresário já mais bem informado e orientado sobre o encaminhamento de suas demandas nas agências, afirma o presidente da Findes, Léo de Castro, nos ofícios encaminhados ao Banestes e à Sedes.
No cenário nacional, a situação não é muito diferente da encontrada no Espírito Santo. Das três linhas de crédito que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já tinha anunciado no final de março, que totalizavam R$ 53 bilhões, quase dois meses depois apenas R$ 6,5 bilhões chegaram às mãos de quem precisa.
Um dos maiores problemas está na linha de financiamento da folha de pagamento. Em todo o país apenas, quatro a cada 100 empresas que poderiam ter acesso conseguiram o empréstimo. Esse programa foi anunciado pela governo federal no dia 27 de março, mas a Medida Provisória (MP) 944, que regulamenta as linhas de crédito, entrou em vigor apenas no dia 3 de abril, cerca de 15 dias depois ser decretado estado de calamidade pública nacional.
A linha tem juros de 3,75% ao ano e atende pequenas e médias empresas com faturamento anual de R$ 360 mil a R$ 10 milhões. Esse financiamento paga até dois salários mínimos mensais para cada empregado, sendo que o dinheiro é depositado diretamente na conta do trabalhador. Porém, muitas empresas não mantêm folha de pagamento cadastrada em bancos.
A condição inicial para ter acesso ao crédito era as empresas se comprometerem a não demitir funcionários sem justa causa o funcionário, por um período de até três meses. Porém, cada instituição financeira poderia impor suas próprias condições, o que foi dificultando a liberação do crédito.
O BNDES repassou R$ 40 bilhões a bancos e cooperativas financeiras, responsáveis pela distribuição dos financiamentos. Até o momento, apenas R$ 1,6 bilhão do total liberado para essa linha emergencial foram aplicados, de acordo com uma reportagem do Jornal Nacional.
O valor mostra que apenas 4% do total de recursos chegaram nos pequenos ao seu destino final. Segundo cálculos do BNDES, o dinheiro serviu para pagar os salários de 1 milhão de trabalhadores.
O economista, professor dos MBAs da FGV e diretor-executivo da Canal Vertical, Roberto Kanter, lembra que, atualmente, a maior parte das empresas, mesmo as do Simples Nacional, estão devendo dinheiro a bancos e até impostos. Então, quanto mais restrições forem impostas, mais complicado se torna o processo de concessão de crédito.
Segundo o Ministério da Economia, em todo o país, 77 mil empresas conseguiram aprovação dos bancos para acessar o crédito. O número ainda é muito tímido, se considerando que, de acordo com o Sebrae, o Brasil tem 17 milhões de pequenos negócios e que quase 7 milhões procuraram crédito no período.
Uma pesquisa da instituição de apoio aos pequenos negócios mostrou ainda que mais da metade delas não conseguiu o dinheiro e mais 28% estão aguardando a liberação do banco.
O crédito acaba sendo travado num período crucial para os negócios, quando elas precisam, além de pagar seus funcionários, ter capital de giro. Esse capital é basicamente um recurso financeiro que circula na empresa para pagar as despesas de curto prazo, até que a companhia receba dos clientes e volte a fazer caixa.
De acordo com o economista Roberto Kanter, atualmente, este é um capital de sobrevivência para os negócios, já que, sem ele, as empresas não resistirão aos impactos da pandemia. "Isso vale tanto para as médias e grandes empresas, como as pequenas em que, muitas das vezes, toda a renda vem desse negócio", aponta.
É em busca desse crédito que a proprietária de um salão de beleza localizado em Laranjeiras, na Serra, procura há dois meses dois bancos: Caixa e Banestes. Com as contas se acumulando e o salão minimamente funcionando, Nilceia Moita Dias, 52 anos, precisou demitir duas das quatro empregadas que tinha.
"Os boletos não param de chegar com os custos do negócio. Não tenho apoio do banco, só vejo a burocracia. Eu precisava de R$ 20 mil a R$ 30 mil para aguentar passar por esse período sem ter que fechar as portas. Mandei toda a documentação pedida, mas eles pedem o imóvel para dar de garantia e não aceitam nenhum outro tipo", relata.
Ela afirma ainda que mandou todos os documentos por e-mail e o que o gerente da Caixa disse ela precisava ter um tempo de movimentação em uma conta no banco para conseguir o financiamento. "Eu estava com dois meses do Simples Nacional atrasado, fui e refinanciei para estar com tudo certo para pegar o empréstimo, mas mesmo assim não consegui."
Segundo uma pesquisa do Sebrae, o Estado tem 301.916 pequenos negócios nos segmentos mais vulneráveis à crise da Covid-19. A gerente de ambiente de negócios e acesso a crédito da instituição, Alline Zanoni, explica que a estimativa é que as empresas tenham capital de giro para permanecer ativas por um período de 23 dias a um mês. "É importante que elas consigam o crédito para ter folego e não fechar definitivamente".
De acordo com a pesquisa "O impacto da pandemia do coronavírus nos pequenos negócios", realizada pelo Sebrae entre os dias 3 e 7 de abril, na terceira semana do mês de março, quando as medidas restritivas ainda estavam começando no Espírito Santo, 88% dos empresários declararam queda de faturamento de 69%, em relação a uma semana normal.
Segundo o Sebrae, 87% dos pequenos negócios do ES não conseguiram crédito durante pandemia. A maioria teve o empréstimo negado ou ainda aguarda a análise do pedido. Apenas 13% das empresas conseguiram a aprovação do empréstimo.
Outra pesquisa do Sebrae mostra que, em todo o país, 54,9% das empresas precisarão pedir empréstimos para manter seu negócio em funcionamento sem gerar demissões. Outros 28,1% ainda não sabem ou não responderam à questão e 17% acreditam que não precisarão recorrer aos bancos.
No país, das empresas que solicitaram empréstimo bancário, 59,2% tiveram pedido negado, 29,5% estão aguardando resposta e apenas 11,3% conseguiram. O diretor da Idea Consultoria em Gestão Empresarial, João Luiz Borges de Araújo, aponta que o percentual de crédito negado tem relação com as garantias exigidas pelos bancos.
Uma das formas de os empréstimos chegarem às micro e pequenas empresas é elas terem um avalista. Algumas iniciativas começaram a ser formuladas neste sentido. Em âmbito nacional, o Sebrae anunciou uma garantia de R$ 12 milhões com o Fundo de Aval para as Micro e Pequenas Empresas (Fampe). Com isso, os negócios com faturamento de até R$ 4,8 milhões por ano podem garantir até 80% do crédito que precisarem tomar.
"O banco vai definir em quais modalidades vai aplicar esse recurso, mas ele deve atrelar o Fampe às linhas emergenciais. Não será necessário que as empresas tenham alguma relação com o Sebrae. Será uma forma de mitigar os riscos para os bancos emprestarem dinheiro a quem não tem muitas garantias", comenta a gerente de ambiente de negócios e acesso a crédito do Sebrae, Alline Zanoni.
No país, a criação de um fundo de aval para garantir crédito poderia ajudar milhares de empresas. O projeto existe, porém, apesar do texto ter sido aprovado no Congresso há 24 dias, o Plano Nacional de Apoio a Micro e Pequenas Empresas (Fampe) só foi assinado pelo presidente no dia 19 de maio. Mas deve levar mais um tempo até o dinheiro ser liberado. Isso porque o governo federal precisará definir as regras do fundo que será criado para pagar os empréstimos, em caso de inadimplência.
Será necessário uma Medida Provisória e fazer uma reunião do Conselho Monetário nacional para aprovar as regras do fundo. Além disso, o governo pretende retomar a carência de oito meses para o início do pagamento do empréstimo, vetada pelo presidente, porém com juros.
Segundo o BNDES, está sendo estruturanda uma injeção de cerca de R$ 20 bilhões do Tesouro Nacional do fundo garantidor do banco para impulsionar os empréstimos e diminuir o risco das empresas.
A reportagem procurou os seguintes bancos para saber sobre o volume de crédito emprestado às empresas no Espírito Santo: BNDES, Bandes, Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Banestes, Bradesco, Caixa, Itaú, Santander e Sicoob. O Banco do Brasil e Banco do Nordeste não responderam à demanda.
O Bradesco disse que "o banco não divulga dados regionais". O Santander informou que não tem esses números para informar. Já o Itaú disse que não tinha recorte regional dos dados.
O Sicoob e o Santander responderam, mas enviaram notas sem as informações solicitadas. O Banestes e o Bandes enviaram dados de linhas de crédito estaduais. Já a Caixa, o Bando do Nordeste e o BNDES não responderam.
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