A Proposta de Emenda à Constituição PEC 3/2022 que prevê a transferência dos terrenos de marinha da União para Estados, municípios, empresas e pessoas levantou, recentemente, um debate sobre a possibilidade de privatização das praias, caso o texto, hoje em tramitação no Senado Federal, seja aprovado.
Popularmente chamada de PEC das Praias, a proposta não trata exatamente de limitar o acesso à costa marítima, mas alguns setores avaliam que abre caminhos para restringir a circulação das pessoas em áreas litorâneas, se passarem a ser controladas por investidores particulares. No debate, há argumentos contra e a favor. Para pontuar o assunto, a reportagem de A Gazeta reuniu dados e ouviu especialistas.
O primeiro ponto a se esclarecer é que a PEC trata de terrenos de marinha, áreas da União que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Portanto, até áreas de aterro – hoje mais distantes do mar – também podem ser consideradas terrenos de marinha e são ocupadas por imóveis públicos e privados.
Atualmente, há dois regimes que disciplinam esses terrenos: por aforamento, pelo qual entes que ocupam a área (foreiros) detêm 83% e a União, 17%; e por ocupação, em que 100% da área é de domínio federal.
O vice-presidente jurídico da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo (Ademi-ES), Gilmar Custódio, explica que, para os foreiros e os ocupantes, há uma cobrança anual, como uma espécie de aluguel, sobre o valor da "terra nua" (sem benfeitorias) do percentual que cabe à União. No aforamento, a taxa de marinha é de 0,6% sobre a propriedade federal, enquanto, no outro regime, são 2% pela ocupação do terreno. Há, ainda, uma cobrança de 5% (laudêmio) em casos de transferência.
Do que está descrito no texto da PEC, o ponto que causa divergências é a previsão de transferência de propriedade dos terrenos da União, que ficaria apenas com o domínio das áreas em que estão instalados serviços públicos federais, inclusive os destinados à utilização por concessionárias, as unidades ambientais e as terras ainda não ocupadas. Nesses casos, o acesso a esses terrenos continua público.
Pela proposta, Estados, municípios e iniciativa privada (empresas e pessoas) passariam a ter direito à propriedade do que ocupam atualmente. A transferência das áreas será gratuita no caso das ocupadas por habitação de interesse social e por entes públicos, e onerosa nos demais casos.
Além disso, os moradores também ficariam livres da cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio.
O texto não fala em privatização. Mas, segundo afirma o professor doutor Marco Antônio Lopes Olsen, do Departamento de Direito da Ufes, ao permitir a transferência dos terrenos para outros entes, a legislação que prevê a proteção da costa fica fragilizada.
"Existe a possibilidade de privatização, sim. Hoje, no atual regime jurídico de proteção, já temos alguns exemplos. São situações em que a população até tem acesso à área, mas que é praticamente inviável", constata, citando como exemplo uma rede de hotéis que se instalou no Rio de Janeiro, com um pequeno e controlado acesso para banhistas que não estão hospedados, e condomínios em Guarapari.
Se a transferência de propriedade for autorizada, acredita Marco Antonio, o modelo pode avançar pelo litoral brasileiro, e naturalmente do Espírito Santo, e tornar mais restrita a circulação das pessoas na praia.
O advogado imobiliarista Renato Risk Minassa já havia ponderado, em entrevista para A Gazeta, que o problema não está diretamente na PEC. Ele explica que as praias são classificadas como bens públicos federais. Mas, se houver a transferência, deixa de ser inconstitucional o PL 4.444/2021, que prevê a outorga (concessão) de 10% de áreas de praias. O projeto está em discussão na Câmara Federal.
Gilmar Custódio não vê a possibilidade de privatização com a PEC. Para ele, a proposta é importante, sobretudo para dar aos foreiros e ocupantes de terreno de marinha o domínio pleno dessas áreas. Além disso, o advogado estima que pode haver aquecimento no mercado imobiliário, não por um crescimento desordenado pelo litoral, mas por facilitar o financiamento habitacional.
"Hoje, temos um grande problema, que é o financiamento para imóveis em terreno de marinha em regime de ocupação. O instituto jurídico utilizado não é aplicável a essas áreas porque, quando uma pessoa compra um imóvel e faz financiamento, com base na lei, a propriedade plena é transferida para o banco. Quando o imóvel está em regime de ocupação, o ocupante não tem o domínio e, então, não pode fazer", explica. Ele estima que 90% das negociações imobiliárias são por financiamento.
Para Gilmar Custódio, a resistência à PEC é uma movimentação política porque a União perderia receita com o fim da taxa de marinha.
Nos debates em Brasília, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que é o relator da PEC, disse em audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado, no final de maio, acreditar que a proposta pode facilitar o registro fundiário e também gerar empregos.
Na mesma audiência pública, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão federal ao qual cabe a gestão dos terrenos de marinha, se manifestou contrária à PEC.
A secretaria adjunta da SPU, Carolina Stuchi, argumentou que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a segurança jurídica e uma gestão adequada dos bens da União. Ela explicou que a aprovação da PEC também traria diversos riscos, como especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados, perda de receitas para a União e insegurança jurídica. Além disso, haveria consequências negativas para as comunidades locais e desigualdades na implementação da proposta.
O professor Marco Antonio Olsen avalia que ainda é cedo para ter certeza que o texto em discussão no Senado será o aprovado, isto é, ele pode ser modificado durante a tramitação. Mas, pelo que está hoje em debate, ele também é contra, principalmente pelos impactos ambientais e sociais que podem decorrer da mudança na legislação.
"Da forma que a PEC está sendo conduzida, é claro que vai mexer, ameaçar a proteção ambiental (restinga, manguezal), terá impacto da proteção desses valores ambientais. Do ponto de vista social, não existe um espaço mais democrático de convivência do que a praia. Isso poderá, sim, ser ameaçado, ou seja, vai se criar um clima em que expulsa as pessoas, a coletividade (da praia). No Senado, a proposta vai requerer debate público grande", opina.
Mesmo quem é contra a PEC, como o professor Marco Antonio, defende a necessidade de revisão da legislação que trata sobre a cobrança de taxas de terreno de marinha. O problema apontado por ele e pelo advogado Minassa, na proposta em debate, é a transferência de propriedade.
Indicadores locais estimavam em 65 mil o número de imóveis em terrenos de marinha no Espírito Santo, mas a SPU informa que há, no Estado, cerca de 50 mil, que representam aproximadamente R$ 40 milhões em arrecadação anual.
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