O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que pessoas que estiverem inadimplentes — ou seja, com dívidas em atraso — poderão ter documentos como passaporte e Carteira Nacional de Habilitação (CNH) apreendidos, além de serem impossibilitadas de participar de concursos públicos e de licitações e de terem o cartão de crédito cancelado, causou polêmica nos últimos dias.
No Espírito Santo, há 1,2 milhão de inadimplentes acumulando R$ 5,8 bilhões em dívidas, segundo dados da Serasa de dezembro de 2022. Cada inadimplente deve, em média, R$ 4,7 mil.
Mas quando, de fato, um devedor pode ter os documentos apreendidos ou ter outras medidas como essas aplicadas contra ele?
Segundo juristas, não é todo e qualquer inadimplente que vai passar por essa situação. O valor devido precisa ter sido cobrado na Justiça e essas medidas só são aplicadas após a decisão do juiz, na execução.
A decisão do STF da semana passada confirmou a constitucionalidade de uma prática que tem sido adotada por juízes desde que o Código do Processo Civil foi revisado, em 2015, e permitiu a aplicação de medidas coercitivas para garantir o pagamento dos valores devidos.
O advogado e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Thiago Ferreira Siqueira explica que o objetivo era pressionar o devedor a realizar o pagamento quando os sistemas não achavam bens ou valores em conta que pudessem ser penhorados e usados para pagamento da dívida, ao mesmo tempo em que a pessoa vivia uma vida incompatível com a ausência de bens, com registros de viagens internacionais ou com carros valiosos, em redes sociais, por exemplo.
"Essas medidas, utilizadas com parcimônia, são mecanismos muito eficazes em situações nas quais esteja claro que o devedor tem condições de pagar suas dívidas, mas oculta seus bens do Poder Judiciário", avalia Siqueira.
A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator Luiz Fux, que concluiu que a medida é válida, "desde que não avance sobre direitos fundamentais e observe os princípios da proporcionalidade e razoabilidade".
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que questionava essas medidas foi proposta pelo PT. Ao votar pela improcedência do pedido do partido, o relator afirmou que o juiz, ao aplicar as determinações, deve "obedecer aos valores especificados no próprio ordenamento jurídico de resguardar e promover a dignidade da pessoa humana".
Fux sinalizou ainda que deve ser observada a proporcionalidade e a razoabilidade da medida e "aplicá-la de modo menos gravoso ao executado". Segundo o ministro, a adequação da medida deve ser analisada caso a caso e qualquer abuso na sua aplicação poderá ser coibido mediante recurso.
Todo inadimplente pode passar por essa situação?
Não. Segundo Carlos Augusto da Motta Leal, advogado sócio do escritório Motta Leal & Advogados Associados, especialista em Direito Civil e Processo Civil, a dívida precisa estar sendo cobrada na Justiça e em fase de execução. Desde 2015, o Código de Processo Civil recebeu um artigo que permite essas medidas excepcionais, como recolhimento de CNH, passaporte ou impossibilidade de assumir concurso público ou de participar de licitação, no caso de empresas devedoras.
As medidas, como perda de passaporte e CNH, valem para todos?
Não. A lei diz que essas medidas devem ser aplicadas em casos excepcionais. De acordo com o advogado Thiago Siqueira, o juiz deve avaliar a razoabilidade e proporcionalidade da aplicação da medida, verificando primeiro se não há outros caminhos menos invasivos e se o devedor, de fato, tem condições de pagar.
Essas sanções geralmente são aplicadas quando há processo judicial para cobrança da dívida que procurou patrimônio ou dinheiro e não foi encontrado nada em nome do devedor, mas, mesmo assim, a pessoa faz viagem internacional e circula com carro luxuoso, por exemplo. O juiz pode considerar incompatibilidade com a situação financeira encontrada e recorrer a essas medidas para pressionar pelo pagamento. Se a pessoa não tem bens ou dinheiro para pagar a dívida e os credores não conseguem comprovar que a pessoa vive em situação incompatível e não há meios de receber, o processo pode ser arquivado.
Devedor pode ser preso?
Não. A única exceção é no caso de dívida de pensão alimentícia, que pode levar o devedor à prisão.
E se sou motorista profissional ou preciso viajar a trabalho?
Caso a pessoa tenha a CNH e passaporte retidos por decisão judicial em cobrança de dívida, mas precise dos documentos para trabalhar, é possível recorrer e demonstrar ao tribunal a necessidade desses documentos para o trabalho da pessoa que está sendo cobrada. Assim, há uma possibilidade de a Justiça reconhecer o excesso e liberar os documentos.
Esta matéria foi atualizada com o valor correto da dívida acumulada pelos inadimplentes no Espírito Santo.
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