Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora passar fome, não.
A declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL) a respeito da fome no Brasil, feita ontem em um café com jornalistas estrangeiros, não representa a realidade e os dados do país. O último relatório da FAO (agência da ONU para agricultura e segurança alimentar), realizado em 2018, desmente o presidente e indica que o problema persiste no país.
Cerca de 5,2 milhões de pessoas passaram ao menos um dia inteiro sem comer ao longo do ano no país. No Espírito Santo, ao menos 74,8 mil pessoas se encontram em situação de insegurança alimentar grave, que significa redução de alimentação entre crianças de um domicílio ou quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos e passa fome.
É o caso de Rhayani Barbosa, 28, que está desempregada há três anos e vive com os cinco filhos em Barramares, Vila Velha. Em muitos dias, ela e as crianças não têm o básico para comer.
Os dados da fome no Espírito Santo são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao ano de 2013, último período em que o levantamento foi feito. Contudo, o índice de fome no Estado deve ser maior, visto que o Brasil enfrenta a maior crise econômica dos últimos anos, explica o diretor de Integração do Instituto Jones dos Santos Neves, Pablo Lira.
A pesquisa foi feita em um período que estávamos em uma condição econômica bem melhor do que a que temos hoje. Até 2013, tínhamos taxa de desemprego caindo. A partir de 2014 começamos a viver o período de recessão, aumento de desemprego, de pessoas em situação de rua. Essa intensificação da crise indica que essa situação de fome piorou, declarou.
Lira diz que a análise dos dados do IBGE avalia a insegurança alimentar a partir da percepção de experiência do domicílio. O levantamento utiliza a classificação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) como parâmetro e classifica o índice de insegurança alimentar como leve, moderado ou grave, este último considerado como fome.
METODOLOGIA
No material do IBGE, a insegurança alimentar leve refere-se a preocupação ou incerteza quanto acesso aos alimentos no futuro. São cerca de 309 mil capixabas nesta situação, o que representa 8% da população. Já a insegurança alimentar moderada é classificada como a redução quantitativa de alimentos entre os adultos ou na ruptura dos padrões resultantes da falta de alimentos entre os adultos.
Essa classificação é encontrada nos domicílios de 85,6 mil pessoas, ou 2,2% da população. Por último, o IBGE mostra que 74,8 mil capixabas (1,9% da população) vivem com insegurança alimentar grave, quando há redução quantitativa de alimentos entre as crianças de um domicílio, ou quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos.
Os dados do Estado mostram que existem pessoas que passam fome aqui. É irresponsável dizer que isso não acontece no Brasil e nem no Espírito Santo. Há pesquisas, evidências empíricas. Não tem como negar, está no dia a dia. Se a gente nega um problema desse a gente não chega a uma solução, analisou Lira.
Em sua declaração ontem, Jair Bolsonaro ainda disse que no Brasil, não se vê pelas ruas pessoas com o físico esquelético como se vê em outros países pelo mundo. O exemplo dado pelo presidente reflete a uma ideia comum, porém errada, que as pessoas tem sobre o aspecto físico de quem tem desnutrição, segundo a professora da Ufes e nutricionista Maria del Carmen Molina. Ela explicou que a doença se manifesta de diversas formas no corpo de quem passa fome.
As pessoas estão acostumadas a identificar desnutrição apenas quando a pessoa é muito magra, quando você vê pele e osso. Mas a desnutrição se apresenta de outras formas, como no desenvolvimento de uma criança, que vai ter uma altura muito inferior a que deveria apresentar em determinada idade. Além disso, temos casos de desnutridos que têm uma aparência não tão magra, pois se alimentam de farinha e água, mas é o que eles conseguem comprar, diz.
A professora ainda destacou que a fome está muito associada à mortalidade infantil, que tem aumentado no país nos últimos anos. A insegurança alimentar está aumentando, não há dúvida. A mortalidade infantil também e há muita relação com a desnutrição energético-proteica, onde há insuficiente quantidade de energia e deficiência global de nutrientes. O que não dá para negar é que as pessoas passam fome, finalizou.
APÓS DECLARAÇÃO, PRESIDENTE VOLTA ATRÁS
Depois de afirmar que não há fome no Brasil, ontem, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) chegou a dizer que uma pequena parte passa fome, mas se irritou com jornalistas.
Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, afirmou primeiro durante café da manhã com jornalistas estrangeiros, em Brasília. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não, continuou. Ainda completou dizendo que você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo. A fala está disponível na transmissão ao vivo publicada na página de Jair Bolsonaro no Facebook.
A declaração foi uma resposta de Bolsonaro a uma pergunta sobre desigualdade e combate à pobreza no país. Adotou-se do governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) para cá, PSDB e depois o PT, (a ideia de) que distribuição de riqueza é criar bolsa, disse Bolsonaro. É o país das bolsas. O que faz tirar o homem da miséria, ou a mulher, é o conhecimento.
Questionado mais tarde em evento em que o Ministério da Cidadania celebrou o Dia Nacional do Futebol, o presidente recuou dizendo que apenas alguns passam fome. A fala contradiz dados oficiais da ONU que apontam que há mais de 5 milhões de pessoas famintas no Brasil.
Ainda na ocasião, o presidente afirmou não saber por que uma pequena parte da população passa fome e por que outros passam mal ainda.
Olha, o brasileiro come mal. Alguns passam fome. Agora, é inaceitável um país tão rico como o nosso, com terras agricultáveis, água em abundância, até o semiárido nordestino tem uma precipitação pluviométrica maior do que Israel. E falei também na questão das Pequenas Centrais Hidrelétricas. Você leva dez anos para conseguir uma licença. E qualquer hectare de água produz de 10 a 15 toneladas de tilápia por ano. Então, um país aqui que a gente não sabe por que pequena parte passa fome e outros passam mal ainda, afirmou.
Questionado sobre estar voltando atrás na declaração inicial, o presidente se irritou e disse aos jornalistas que não via nenhum magro. Ah, pelo amor de Deus, se for para entrar em detalhe, em filigrana, eu vou embora. Eu não estou vendo nenhum magro aqui, certo? Temos problema alimentar no Brasil? Temos, não é culpa minha, vem de trás, estamos tentando resolver, disse.(Com agências)
VICE GOVERNADORA: "FOME NÃO É SÓ PELE COLADA NO OSSO"
A afirmação de Bolsonaro foi criticada pela vice-governadora Jacqueline Moraes, que hoje comanda um trabalho de integração das políticas públicas para questões sociais no Estado. Ela pontuou que este problema social não pode ser minimizado, apesar das evoluções dos últimos anos, já que pode voltar a piorar.
Fome não é necessariamente da pele colada no osso. É ter um alimento digno e adequado para a sua sobrevivência. Não podemos considerar que o cidadão que só tem feijão com farinha para comer não passa fome, pontuou.
Segundo ela, de janeiro a maio deste ano, 146 mil famílias do Estado foram enquadradas na extrema pobreza aqueles que possuem renda per capita mensal abaixo de R$ 109,00. Apesar de não ser um dado direto de insegurança alimentar, esse é um indicativo que há situação de fome.
Quanto à forma de ocorrência do problema no Estado, Jacqueline afirma que, de acordo com sua percepção, ao percorrer o Estado, o problema é mais grave nas áreas urbanas do que no interior.
COMPARAÇÃO
Ela também rebateu a avaliação do presidente, ao comparar o problema da fome no Brasil com outros países. Não concordo com a fala dele. Não é preciso estar igual a outros países onde há muita pobreza para reconhecer que existe fome no Brasil. Há pessoas que têm privação de tudo, de todas as suas necessidades básicas. O avanço da miséria está diretamente ligado à crise econômica. (Natalia Devens)
PARLAMENTARES E VEÍCULOS ESTRANGEIROS CRITICAM AFIRMAÇÃO
Parlamentares e veículos estrangeiros criticaram a fala do presidente. A avaliação dos políticos é que Bolsonaro desconhece a realidade do país. Por outro lado, aliados alegam que ele foi mal interpretado e usou uma força de expressão.
Líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por exemplo, disse que a ignorância e o despreparo penalizam principalmente os mais pobres. Só um presidente que desconhece por completo a realidade brasileira pode falar esse tipo de besteira.
Já o líder do PSL no Senado, Major Olímpio, defendeu o presidente. Na avaliação do senador, o presidente é simplório e, muitas vezes, sua fala gera interpretações dúbias. Eu vejo mais como uma força de expressão dele. Ele quis dizer que, com abundância do Brasil, com a capacidade de produção de alimentos, é raro morrer de fome.
INTERNACIONAL
Veículos de comunicação nacionais e internacionais repercutiram e criticaram a declaração de Bolsonaro. O portal canadense CityNews apontou que a pobreza no Brasil tem aumentado diante da recessão econômica.
Já o portal venezuelano Telesur divulgou dados de que aproximadamente 55 milhões de brasileiros sobrevivem com aproximadamente R$ 20,62.
Outro veículo que repercutiu a declaração foi o portal asiático CNA. O site apontou que apesar de Bolsonaro dizer que a fome no Brazil é uma grande mentira, 5,1 milhões de brasileiros estão desnutridos, segundo dados da ONU.
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