Por Luanna Esteves
Com oito filhos na canoa, mais um na barriga, dona Felicidade desceu o Rio Santa Maria do município de Santa Leopoldina até Vitória para tratar a febre amarela do marido. Isso nos primeiros meses de 1935. Ele não resistiu e faleceu. Sem conhecer ninguém nem ter casa para morar, ela recomeçou a vida do zero, arregaçou as mangas e se tornou referência de mulher na Ilha das Caieiras, tanto que virou nome da principal rua do bairro: Felicidade Corrêa dos Santos.
Preta, pobre, mulher, analfabeta, dona Felicidade fez história como uma grande matriarca, já que era ela quem sustentava a família na época em que o Código Civil pregava que só o homem era o responsável pela casa. Além de ser benzedeira, conquistou respeito com sua determinação para o trabalho e para criar os nove filhos, em um período de muita escassez.
Você tá vendo a gente aqui hoje? Somos simples, mas somos ricos, minha filha. Nós passamos muita dificuldade quando crianças. Tirava a roupa de noite e lavava para vestir no outro dia cedo, porque só tinha uma peça, descreveu tia Laura, como é carinhosamente conhecida, com 89 anos, uma das filhas ainda vivas de dona Felicidade.
O tia veio com um grande feito. Laura Corrêa ajudou a fundar a primeira creche de Vitória, a CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha, para ajudar mães que queriam trabalhar fora.
Minha mãe era baixinha, mas era forte igual a gente, sabe?! Ela lavava roupa para fora, trabalhava para as famílias que eram mais bem de vida aqui na ilha e também vendia água. A gente ajudava, pois levava a lata dágua na cabeça, custava 300 réis na época, conta tia Laura.
Dona Felicidade morreu em 1991, época em que a atividade do desfio de siri já se firmava como uma tradição. Por coincidência, o sustento da família Corrêa dos Santos sempre veio da água. O marido de dona Felicidade fabricava barcos, ela vendia água e lavava roupas e suas filhas e netas desfiam siri, fruto do mar.
A tradição começou com a gente. No início, a gente desfiava para comer. Mas com o povo pedindo, passamos a vender no Mercado da Vila Rubim. E dava supercerto. Aí fomos passando adiante o jeito de desfiar, conta tia Laura, que é a desfiadeira mais antiga.
Por limitações de saúde, hoje ela não desfia mais, assim como sua irmã caçula, tia Elza, de 84 anos. Mas antes de parar, passaram os conhecimentos para as filhas, noras e netas. Tem que ensinar que a gente não depende de ninguém eles é que dependem da gente, né?!, provoca, entre sorrisos, tia Laura.
Simone Leal é de uma terceira geração de desfiadeiras e se orgulha de, há 20 anos, ter esse ofício como a principal fonte de renda da família. Não é só pelo dinheiro, mas também pelos valores. Nós, desfiadeiras, mantemos a tradição gastronômica de Vitória. E a gente não só desfia. Se precisar, a gente pesca, limpa, desfia, cozinha, vende. A gente faz de tudo, somos batalhadoras, guerreiras mesmo. E aprendemos com tia Laura e tia Elza a sermos independentes de homem, compartilha.
Quando a reportagem comentou com Simone que só há 58 anos, com o Estatuto da Mulher Casada, foi abolida a regra social de que as mulheres não poderiam trabalhar sem autorização do marido, ela soltou um Deus me livre! bem alto.
Já imaginou eu, Simone, ou alguma mulher da minha comunidade sem poder trabalhar, sem poder ter nosso próprio dinheiro? Impossível. Isso seria como uma prisão.
Resgatando a história, os direitos da mulher são bem recentes. Apenas há 32 anos, a Constituição delibera que mulheres e homens têm os mesmos direitos, apesar de ainda ganhar 20% a menos que o homem para exercer a mesma função, segundo uma pesquisa do IBGE de 2019. Simone bate o pé e conclui: Pois é essa liberdade que nós, mulheres da Ilha, podemos ensinar. Tendo nosso próprio trabalho, a gente pode tudo.
Na mesma década (1930) em que dona Felicidade batalhava para se reerguer sozinha na Ilha das Caieiras, em Vitória, em Guaçuí, no Sul do Estado, Emiliana Emery se tornava a primeira mulher capixaba a abrir uma fábrica, que produzia pães e doces. Mas como não só de pão vive a mulher, dona Emiliana foi a primeira capixaba a conseguir o título de eleitora e teve forte influência na emancipação política da sua cidade, quando o Código Civil da época (vigente desde 1916) pregava que a mulher só poderia trabalhar ou abrir uma conta no banco com autorização do marido. Separadas por alguns quilômetros e pela condição social, as duas lutavam por algo em comum: a independência financeira, o que era considerado afrontoso.
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