Adotar quatro irmãos de uma só vez ou dois adolescentes com passagens pela polícia parece pouco provável para a maioria dos pretendentes no Brasil. E realmente é, mas ambos os casos de adoção se concretizaram no Espírito Santo com casais estrangeiros.
Tanto os adolescentes quanto o grupo de irmãos foram morar na Itália depois de passarem por todos os cadastros nacionais. Os dois casos são alguns dos que psicólogo Helerson Silva, da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), participou.
"Eles (dois adolescentes) tiveram dezenas de passagens pela polícia uns dois anos antes da adoção. Mas depois foram acolhidos e foi feito um ótimo trabalho com eles, pelos técnicos da instituição, sobre a importância da adoção e para que refletissem o caminho que estavam trilhando. No final, foram adotados por um casal estrangeiro e estão muito bem hoje em dia", conta o psicólogo.
Em entrevista ao Gazeta Online, na Semana Nacional da Adoção, o profissional explica como funciona esse processo para pretendentes de dentro e de fora do país. Silva responde as principais dúvidas sobre o tema e diz que os pais podem entregar voluntariamente um filho quando não têm condições de criá-lo. Confira a conversa.
Você participa de algum processo diretamente?
Só em casos de adoção internacional, que é quando esgotam todos os cadastros. A competência da Ceja (Comissão Estadual Judiciária de Adoção) é só adoção internacional. Quando surge uma criança, a gente procura os pretendentes naquela cidade. Não encontrou, passa para o Estado inteiro. Não encontrou, o país inteiro. Só se não encontrar no país e o juiz entender que pode ir para a adoção internacional, o cadastro internacional é acionado.
Crianças daqui já foram para fora?
Muitos já foram, mas essa quantidade tem diminuído, porque tem subido o perfil do brasileiro. Ano passado foram duas irmãs para os EUA. Uma tinha em torno de 12 anos e, a outra, 7 anos. Já tivemos adotantes da França, Espanha e, principalmente, Itália.
A campanha Esperando por Você foi lançada em maio de 2017 para estimular a adoção de crianças e adolescentes que vivem há muito tempo em instituições de acolhimento do estado. Ela tem ajudado?
Muito. Tem vezes que você não consegue nem internacional. Por exemplo: a gente conseguiu uma adoção de uma menina de 16 anos aqui no Estado. Conseguimos também uma menina que tinha 13 anos com deficiência mental. Ela foi para Minas Gerais. Tudo pela campanha. Só vai para a campanha depois de tentar todos os cadastros, incluindo o internacional. Na campanha, são aquelas crianças e adolescentes de difícil colocação, com doenças, deficiências ou que já são bem mais velhos.
Já participou de algum encontro entre pais e filhos?
Na adoção internacional a gente acompanha de perto. O casal tem que vir aqui e ficar um mês. A gente acompanha não só o primeiro encontro como faz visita na casa. Na adoção internacional tem a diferença de língua e cultura.
Depois vocês têm contato com essas crianças e adolescente?
A adoção internacional é muito segura. As pessoas, às vezes, têm um pouco de medo, mas o governo tem a obrigação durante dois anos, a cada seis meses, de mandar relatórios para saber como está essa criança.
VÍDEO DA CAMPANHA ESPERANDO POR VOCÊ
Algum caso marcou mais?
Vários. Já fiz uma adoção de quatro crianças de uma vez. Até que a idade não era grande, o mais velho tinha 7 anos. Mas como eram quatro, ninguém queria de uma vez. Nessa adoção o casal até teve um problema, porque o pai do adotante faleceu na Itália durante a estadia dele aqui.
Sempre falo que o brasileiro não é melhor nem pior do que o estrangeiro em questão de adoção. A diferença é que o estrangeiro é mais preparado. Eles têm muitos mais cursos. Infelizmente, as pessoas aqui veem como entrave o curso de uma semana, não veem como oportunidade. Na Itália, às vezes, eles ficam um ano fazendo curso e veem como positivo. Nunca tive um caso de adoção internacional que deu errado e a adoção nacional dá.
O que dá errado?
Às vezes, a criança ou o adolescente não está muito num estado desejoso pelo casal. Mas, muitas vezes, é falta de preparo. A criança vai aprontar como qualquer outra criança.
Às vezes, a pessoa desiste no curso e isso é bom, porque ela não pegou uma criança e devolveu.
Na hora do encontro a pessoa pode desistir?
Pode. Mas não deveria acontecer, porque o pretendente consegue escolher o perfil que ele quer da criança. Ele tem até mais poder de escolha do que em uma gravidez biológica, onde você não escolhe sexo ou uma deficiência. O estatuto fala que ele não pode ficar recusando. Na terceira recusa, ele é suspenso para ser feita uma reavaliação para saber o que está acontecendo.
Adolescentes com passagem.
Nós tivemos também outro caso de dois irmãos de 13 e 11 anos, que tinham até passagem pela polícia por roubo.
Eles tomaram consciência que aquele caminho era errado. Recebi na semana passada uma foto do casal. Eles estão ótimos, grandões. Eram crianças que já estavam indo para o sistema penal e estão muito bem.
Qual é o primeiro passo para uma adoção?
O primeiro passo é procurar a Vara da Infância e Juventude da cidade. Lá ele vai ter todas as informações e documentações que precisa apresentar (CPF, RG, comprovante de residência, comprovante de renda, atestado de saúde, entre outros). Dando entrada, é gerado um processo e você vai ser chamado para fazer uma entrevista com psicólogo, assistente social e também vai receber uma visita. Participa de um curso de formação que discute vários aspectos da adoção. Passando por esse curso, o juiz habilita e você entra no cadastro de adoção, aguardando uma criança ou adolescente naquele perfil que você selecionou.
Esse cadastro é nacional?
Sim. Ele está até em fase de mudança, porque aqui no Espírito Santo nós usávamos além do cadastro nacional, um estadual. Como o nosso cadastro era um pouco mais completo, o Conselho Nacional de Justiça decidiu adotar o nosso cadastro para ser padrão nacional. Estamos em fase de mudança. O nosso cadastro aqui virando nacional.
O que tem a mais nesse cadastro?
Antigamente, o cadastro era simplesmente de adoção. Esse novo cadastro acompanha a criança desde quando ela entra no acolhimento, não necessariamente vai gerar uma adoção. Às vezes, ela volta para os pais. A grande maioria volta para os pais. Deu algum problema na família, sanado o problema, ela volta. Ser for para a adoção é acompanhado ou para outro familiar. É um sistema de gerência da vida da criança do acolhimento até a saída dela.
Quais situações levam uma criança ao abrigo?
Geralmente, qualquer situação de negligência, situação que a criança está correndo algum risco, abandono, exploração sexual. O Conselho Tutelar e o Ministério Público atuam retirando a criança dessa família e acolhendo provisoriamente, para tentar entender o que aconteceu naquela casa. É uma medida de emergência. De repente, é algo que pode ser sanado.
É preferível que essa criança fique no seio familiar, da família nuclear (pai e mãe), se possível, ou a família extensa.
Algumas pessoas questionam a demora para uma criança ser liberada para a adoção.
Às vezes, as pessoas acham que tira a criança da família e já põe para a adoção. Eu sempre pergunto: 'E se fosse o seu filho?'. A coisa não pode ser assim. Tem que ter um processo legal. Os pais têm direito à defesa, não pode violar o direito do outro. Mas é claro que não pode esperar tanto tempo que a criança fique vivendo no abrigo. O judiciário tem que buscar esse meio termo. O Estatuto da Criança fala e a gente tem quase como um mantra: o melhor interesse da criança. A gente não olha o direito do pretendente de ter um filho, o direito da criança de ter uma família. Sempre é aos olhos da criança.
Perfil mais buscado.
Graças a Deus, o brasileiro aumentou o perfil. Hoje, uma criança de 7, 8 anos sozinha (sem irmãos), a gente consegue adoção. Antigamente, essas crianças já iam para a adoção internacional, que é quando se esgotam todos os cadastro nacionais. Mudou um pouco isso, mas com certeza bebês não aparecem todo dia.
A mãe pode entregar de maneira voluntária um filho?
Tem um trabalho de entrega consciente para a mãe ou o pai que deseja entregar . E o certo é entregar ao Poder Judiciário, porque já tem essa fila de pessoas cadastradas. Não entregue diretamente para uma pessoa, porque é contra a lei e você não sabe quem ela é.
Os pais têm até 10 dias para voltar atrás do desejo de entregar, caso se arrependam. Com essa entrega, as crianças vão para a adoção em um tempo bem menor. Geralmente, a mãe não quer o bebê desde que nasce e prefere entregar. A forma segura e se fazer isso é entregado à Justiça da Infância e Juventude, que providenciará uma audiência para confirmar o desejo.
Qual é a validade da habilitação?
De três anos. Depois disso, a pessoa tem que renovar, mas não precisa fazer o curso novamente. Conversa com psicólogo, assistente social e apresenta a documentação de novo. Esse prazo existe porque em três anos muita coisa muda: casais se separam, pessoas perdem emprego e não têm interesse mais... Vendo que está tudo ok, a pessoa está renovada por mais três anos. Caso não renove, vence e a pessoa sai da fila.
Como funciona a fila de espera?
É por ordem de habilitação, ou seja, o juiz assina um termo que habilita a pessoa. A partir dessa data, coloca a pessoa na fila. Se tiver empate, a que vale é a que entrou com o pedido primeiro. O tempo de espera depende do perfil deseja. O que vale não é só posição na fila, mas quão amplo é o perfil. Quanto maior é esse perfil, mais rápido é.
Qual é o significado da adoção para quem é adotado?
Para criança, é tudo. Existem alguns estudos que foram feitos em Boston e analisaram o cérebro de três grupos de crianças: acolhidas, que nunca foram acolhidas (tinham famílias) e adotadas há um ano (crianças que foram acolhidas no passado e que já tinham sido adotadas). Quando compararam o cérebro de crianças que nunca foram acolhidas com as que estavam acolhidas tinham diferenças. A negligência muda até o cérebro da criança. Agora o mais interessante é que, quando se comparava com as crianças que já foram adotadas, o cérebro se recuperava.
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