O ataque à escola em São Paulo, o esfaqueamento de um jovem por um colega no Rio de Janeiro, e um massacre em uma mesquita da Nova Zelândia ontem, que deixou 49 pessoas mortas (veja mais nas páginas 10 e 11) mesmo distantes, se cruzam em alguns pontos.
Um deles é o fato de os agressores serem frequentadores de fóruns na internet dedicados à discursos de ódio. Nesses ambientes, escondidos sob o anonimato, homens falam abertamente sobre matar negros, mulheres, imigrantes, e qualquer outra minoria. As páginas, em sua maioria, só são acessadas através da deep web (zona da internet que não pode ser detectada facilmente pelos tradicionais motores de busca, garantindo privacidade e anonimato para os seus navegantes).
No caso das mortes da escola em Suzano, a ligação entre os atiradores e as redes de ódio está cada vez mais clara. A gente tem notícia de que os assassinos se comunicavam pela 'deep web' com outras pessoas. Isso, portanto, precisa ser investigado para se verificar se há uma organização criminosa atuando por trás da ação que cometeram, disse Gianpaolo Smanio, chefe do Ministério Público de São Paulo, ao G1.
No dia do atentado, membros desses fóruns comemoraram a ação e publicaram um texto onde um usuário, supostamente Guilherme, agradece ao administrador do grupos pelos "conselhos". Enquanto isso, outros membros lamentavam o fato de os dois não terem "batido a meta" do massacre de realengo, onde 12 pessoas morreram.
"A gente entende que esses discursos de ódio produzem um tipo de vinculação entre esses frequentadores que fazem apologia a violência, uso de armas, supremacia branca, misoginia, racismo", afirma a presidente do Conselho Estadual de Psicologia, Maria Carolina Roseiro.
Para ela, esses grupos são especialmente atrativos para pessoas que têm dificuldade de socialização. Para o psicólogo e mestre em Violência e Saúde, Getulio Souza Pinto, o apelo está na falsa ideia de sociabilidade criada por essas comunidades. "Eles trazem a ideia de que a pessoa está convivendo com muitas outras, mas de fato, ela está sozinha em casa. Nesses locais, você pode falar de forma que não poderia em ambientes reais e com pessoas que se sentem, da mesma forma", explica.
Esse isolamento em ambientes de internet, mediado pelo ódio à minorias compartilhado pelos membros, forma uma 'mistura explosiva', segundo Getúlio. "Aquela pessoa com uma relação social precária, que se refugia no seu quarto, se insere em uma rede que apresenta uma suposta sociabilidade, porém alimentada por uma rede de ódio. Imagina o que pode acontecer quando ele sai dessa caverna para o mundo real?", questiona.
PERFIL
O perfil dos autores desses ataques é muito é parecido com o perfil dos frequentadores dos fóruns de ódio. Segundo especialistas, são pessoas solitárias, que vêm naquele meio uma forma de encontrar eco às próprias frustrações. Michael Stone, professor de psiquiatria clínica da Universidade Columbia, estudou a história dos assassinatos em massa nos Estado Unidos, onde ele mais ocorrem, e descobriu que o autor é quase exclusivamente homem, branco, da classe trabalhadora, impulsionado por algum tipo de ressentimento. Só 20% tinha algum tipo de distúrbio mental.
"Esses ataques têm relação com a maneira com esse sujeito - homem e branco - se vê na sociedade. Ele dá vazão à sua fragilidade a partir da violência. Esse sujeito se considera a normalidade e alimenta ódio contra todos aqueles que ele acredita não se encaixarem na normalidade", diz o psicólogo especialista em Violência e Saúde Getúlio Souza Pinto.
O discurso de ódio, segundo a presidente do Conselho Estadual de Psicologia, Maria Carolina, se fundamenta na ideia de privilégio, na crença de que eles são melhores que os demais. "Eles acham que merecem esse lugar de privilégio, natural por serem brancos e homens, e se frustram quando isso não acontece", complementa.
NOTORIEDADE
Anônimos, invisíveis à sociedade, os frequentadores de grupos de ódio buscam, contraditoriamente, a notoriedade. Aqueles que decidem agir e praticar atentados almejam essa visibilidade mesmo após a morte.
Como os sites são anônimos, eles criam uma persona para ter vinculação e interação. Muitos deles só passam a ser conhecidos realmente pelo próprio grupo a partir da morte, afirma a presidente do Conselho Estadual de Psicologia, Maria Carolina Roseiro. Em postagens em alguns desses fóruns, os nomes de Guilherme Taucci Monteiro, 17, e Luiz Henrique de Castro, 25 - os assassinos do ataque em Suzano, São Paulo - são vangloriados (veja abaixo).
O delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, afirmou em entrevista ao G1 que a investigação aponta que a motivação do massacre de Suzano foi por reconhecimento da comunidade e para aparecer na mídia: Esse foi o principal objetivo, não tinha outro, diz delegado. Não se sentiam reconhecidos, queriam demonstrar que podiam agir como (o massacre em) Columbine, nos Estados Unidos com crueldade e com um caráter trágico para que fossem mais reconhecidos do que eles, afirmou o delegado, na quinta-feira.
COLUMBINE
O ataque à escola em Columbine, nos Estados Unidos, um dos mais icônicos da história, completa 20 anos em abril. Doze alunos e um professor morreram nas mãos de dois jovens que se mataram. Há indícios de que dois os responsáveis por atacar a escola em Suzano, na última quarta-feira, tenham se inspirado nesse ataque. Há nos Estados Unidos pesquisas que demonstram a existência de um efeito de imitação onde assassinos buscam se inspirar ou superar ou precedentes.
Os especialistas concordam que esse tipo de violência, baseada em discursos de supremacia branca e masculina, não era comum no contexto da criminalidade do Brasil. Apesar de sermos uma sociedade violenta, a nossa violência tem outra característica. Esse tipo é recente na nossa história. Tivemos Realengo (no Rio de Janeiro, em 2011), mas isso não é comum na nossa estrutura. Fico pensando que tipo de moral estamos importando?, questiona o especialista em Violência e Saúde Getúlio Souza Pinto.
Maria Carolina concorda. Esse discurso supremacista que aparece nesses grupos até então não era tão presente nos casos de violência aqui, diz.
A psicóloga acrescenta que esse padrão cultural da supremacia branca e masculina é mais comum na sociedade norte-americana e vem vinculado ainda a um discurso bélico, de apologia às armas. O ódio não é novidade na nossa sociedade. A exponenciação dele provocada pela internet que é, completa Getúlio.
PAIS DEVEM ACOMPANHAR O ACESSO DOS FILHOS À INTERNET
O acesso sem limites de crianças e jovens à internet é um ponto falho na educação em muitas residências, que pode culminar com o envolvimento deles no mundo obscuro das redes. Mestre em Psicologia Institucional e especialista em Impactos da Violência na Saúde Getúlio Souza Pinto ressalta que é fundamental que os pais acompanhem de perto as atividades virtuais dos filhos.
De fato, faz-se necessário que os pais estejam próximos, monitorando o que é visto na internet. É preciso interposição de limites, não necessariamente vigilância, mas acompanhamento permanente, opina o psicólogo.
SEGURANÇA
Mas, ainda que as famílias tenham responsabilidade sobre as crianças e adolescentes e o que elas acessam nas redes, Getúlio destaca que a área de segurança pública não pode se eximir de seu papel.
Para ele, os fóruns de ódio devem ser combatidos também pela polícia, uma vez que a incitação à violência é crime. Sendo assim, isso se torna uma questão de segurança pública e é preciso derrubar essa estrutura.
CAMPANHA PARA COMBATER O DISCURSO DE ÓDIO
Em um momento em que a sociedade tem se mostrado cada vez mais intolerante, uma campanha nacional traz à tona o seguinte tema: discurso de ódio não. É um movimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que será lançado hoje em Vitória. Entre outros assuntos, estará em pauta o massacre de Suzano.
Psicólogos do Estado vão se reunir para debater o discurso de ódio, as implicações da violência na saúde, entre outros temas. Para o psicólogo Getúlio Pinto, o envolvimento de profissionais da área nessa discussão é fundamental. O que se coloca para nós é: o que está mudando na sociedade, no contexto sociocultural do país, e o que se pode fazer? Isso não fazia muito parte do nosso cotidiano e agora temos um certo aval público para essa violência, aponta ele.
Getúlio observa que há um aumento do discurso extremo. Inclusive nas vivências comuns, na padaria, no supermercado. As pessoas estão se liberando mais para discursos de ódio. Qual o impacto disso no desenvolvimento de crianças e adolescentes? Como serão suas relações sociais se tornar-se comum desconsiderar o outro?, conclui o psicólogo, levantando pontos de reflexão.
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