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Jornalista conta detalhes da vida de sobreviventes da Boate Kiss

Jornalista conta detalhes da vida de sobreviventes da Boate Kiss

Cinco anos depois do incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria (RS), a jornalista Daniela Arbex revela detalhes da vida de familiares

Publicado em 28 de janeiro de 2018 às 01:07

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Daniela Arbex conta as histórias no livro Todo Dia a Mesma Noite”. (Divulgação)

Há cinco anos a cidade de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, não é mais a mesma. Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio na boate Kiss causou a morte de 242 pessoas, deixou 636 feridos e marcou pra sempre a rotina dos moradores da região. Muito foi dito e discutido, mas muitas histórias ainda não foram contadas. Algumas delas estão em “Todo Dia a Mesma Noite”, novo livro da jornalista Daniela Arbex, que resgata cenas do dia do incêndio, a incessante busca dos familiares para localizar os seus filhos e o impacto daqueles momentos de terror na vida de profissionais da saúde que quebraram o silêncio para falar pela primeira vez sobre as cenas angustiantes que presenciaram naquele dia.

Daniela trabalha há 22 anos como repórter especial do jornal “Tribuna de Minas”. Já ganhou mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, entre eles três Esso, o IPYS de melhor investigação da América Latina e o Knight Internacional. A premiada jornalista já publicou outros dois livros. ”Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes No Maior Hospício do Brasil” foi sua obra de estreia e recentemente se transformou em um documentário da HBO. Seu segundo livro, “Cova 312 – A longa jornada de uma repórter para descobrir o destino de um guerrilheiro” conta a história real do sumiço e da morte de um jovem militante político.

Em entrevista, a jornalista mineira conta que apesar da experiência com assuntos dramáticos, desta vez precisou de acompanhamento psicológico, tamanho o choque emocional vivido por ela durante as centenas de horas dos depoimentos de sobreviventes, familiares das vítimas, equipes de resgate e profissionais da área da saúde que atuaram na madrugada daquele triste 27 de janeiro. Confira.

A história da boate Kiss teve muita visibilidade. Por que escrever sobre ela? Faltava alguma coisa?

Há dois anos eu fui procurada pelo radialista Marcos Moreno. Ele tinha conhecido uma enfermeira de Santa Maria e disse que eu precisava contar essa história. Eu não entendi, porque todo mundo já tinha falado sobre isso e Santa Maria era longe. Mas ele insistiu. Ele é muito brincalhão, e nunca o tinha visto falar com essa seriedade toda. Depois de algum tempo resolvi me apresentar para as famílias para saber como elas estavam. Comecei a mandar mensagens pelas redes sociais. A primeira mãe que me respondeu, disse “que bom! Precisamos ser ouvidos”.

E com o que você se deparou quando chegou lá?

Encontrei realmente histórias que não tinham sido contadas. Me impressionei com os profissionais da saúde que socorreram as vítimas. Foi a primeira vez que eles falaram sobre isso. Eles não tinham comentado nem entre eles o que viveram naquele dia. Lidaram com o silêncio. Foi muito impressionante ir fazendo essas descobertas.

Depois de cinco anos, Santa Maria ainda vive o luto? Como eles lidam com essa tragédia que marcou a cidade e mudou a vida de muitos moradores?

Isso é muito forte, o luto é muito presente. É muito difícil falar da história, é como se eles quisessem que isso não tivesse acontecido. Percebo essa resistência, não por indiferença, mas o trauma é tão grande que não dá pra esquecer. O que eu sinto desse silêncio é a sensação de querer virar a página.

E como foi o processo de construção do livro? Você conheceu as famílias?

Eu fiz cinco visitas a Santa Maria. Cada vez que ia lá eu ficava uns 15 dias. E eu tive que buscar as histórias. Comecei procurando as famílias que tinham assinado a ata de formação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. A partir dali cada um foi indicando o outro. Para chegar até a família, tinha toda uma resistência para ser quebrada. Para alguns eu era uma mineira que queria contar a história deles e ganhar dinheiro com a dor da família deles. A construção de confiança foi árdua.

E conseguiu visitar a boate?

Eu estive lá na minha última visita em Santa Maria. Eu evitei ao máximo porque eu sabia que ia ser difícil. Foi um dos momentos mais dolorosos porque a boate ainda tem os vestígios daquela madrugada, a presença dessas pessoas. As placas de reserva nas mesas ainda estão lá.

Os números (242 mortos e 636 feridos) ganham nome e sobrenome no seu livro. Você conta detalhes de como aqueles jovens chegaram lá, a busca das famílias para descobriu a situação dos filhos. Por que quis mostrar esse lado da história?

Eu queria que as pessoas se colocassem no lugar do outro. Lembrar é muito incômodo, então esse livro te tira da zona de conforto pra te colocar dentro dessa história. Eu falo sobre os processos ligados ao incêndio da boate Kiss. É o capitulo mais denso. Eles têm várias reviravoltas, em um livro não caberia tudo isso. Mas o que toca a gente é a história do outro. Eu achei que ia prestar um serviço mais relevante se eu escancarasse essa humanidade. Muitas vezes quando eu escrevo é para mim mesmo, buscando respostas, são coisas que eu gostaria de saber. Eu tentei trabalhar nesse sentido.

E como os profissionais da saúde que trabalharam incessantemente lidam com aquelas cenas de guerra?

Eles não sabiam que precisavam falar. Quando eles começaram a contar o que viram foi impressionante. Até o psiquiatra, que acompanhou as entrevistas, ficou surpreso. Ele já conhecia esses profissionais mas não sabia o tamanho do sofrimento que eles carregavam. Teve uma enfermeira de Porto Alegre que perdeu seu irmão na boate e nunca tinha falado sobre isso. E ela se abriu. Tem também o cirurgião Ewerton Morais, que estava de plantão naquele dia e enquanto atendia as vítimas descobriu que seu filho Arthur também estava na boate. Ele pediu à família para procurar pelo filho e continuou tentando salvar vidas de desconhecidos. Ele nunca tinha falado e resistiu à beça. Durante a nossa conversa. no início ele adotou uma postura de frieza, até que a armadura caiu e ele mostrou o tamanho da dor em um acesso de choro.

E você conseguiu falar com os acusados (quatro pessoas ainda respondem em liberdade: os donos da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann; o músico Marcelo dos Santos e o produtor da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Leão)?

Tentei falar... Principalmente com os donos da boate, mas eles não se interessaram em participar. O advogado do Kiko conhece meu trabalho, ele já tinha lido meu livro “Holocausto Brasileiro” e foi muito atencioso, mas o cliente disse que não falaria. O Marcelo se interessou menos ainda.

O que você, que conheceu os familiares e se envolveu com a história, acha da liberdade dos quatro acusados?

No livro, uma das grandes denúncias é o efeito da falta de justiça na vida das famílias. É claro que os acusados não tiveram intenção de matar, mas é preciso assumir o risco quando você coloca obstáculos para impedir a saída do público, lacra exaustores, veda as janelas de um lugar fechado, acende um artefato comprado para ser usado num lugar aberto... Você não tem a intenção, mas tem que assumir o risco. E eu acho também que são quatro pessoas sentadas no banco do réus, mas tem mais gente envolvida. A omissão gera barbárie. Existem os que deixaram de fiscalizar como deveria, tem também a burocracia para justificar as falhas. Esse livro é a cara do Brasil, mostra uma Justiça que não representa os interesses dos cidadãos, sendo omissa no cumprimento dos seus deveres. E o poder público também é omisso, não fiscaliza e utiliza a burocracia pra se justificar. Deixam abrir um local como a boate para depois pedir o alvará. A Lei Kiss já nasceu toda retalhada, com artigos importantes vetados. A gente não pode permitir que as coisas continuem assim e que esses alvarás continuem sendo emitidos dessa forma.

Tanto em “Holocausto Brasileiro” quanto no “Cova 312” você trata de assuntos pesados que deixaram grandes traumas. O que eles têm em comum com “Todo Dia a Mesma Noite”?

Acho que o ponto em comum é sempre construir memórias. São fatos que marcaram a história do Brasil e que não devemos esquecer. Precisamos lembrar dessa tragédia ou vamos continuar repetindo sempre os mesmos erros.

Em algum momento do livro você chama esse acontecimento de um “quebra-cabeça de dor”. Como foi mergulhar nisso e juntar todas essas partes de sofrimento?

Foi muito difícil. Eu já tenho experiência em falar sobre dramas humanos, mas nunca uma escuta me afetou tanto quanto contar essa história. Nunca fiz terapia. Mas desta vez eu engordei oito quilos e pela primeira vez precisei de ajuda psicológica. Eu chegava em casa e abraçava meu filho pequeno, com medo de perdê-lo. A gente se coloca no lugar dessas mães. Isso afetou minha rotina familiar. Fiquei seis meses mergulhada na escrita. Meu marido uma vez me disse “ou você acaba esse livro ou ele acaba com você”. Foi muito doloroso, mas também é muito gratificante. Fiquei honrada por terem confiado em mim e por me entregarem suas memórias.

Foram dois anos convivendo com as famílias. Que mudança notou desde o primeiro encontro até o final?

Minha última ida para Santa Maria foi para ler o capítulo com os personagens. Em todos os livros eu faço isso. O Marcelo Canellas (repórter do “Fantástico”, que escreve o prefácio) disse que não acreditava que eu fazia isso. Mas preciso ver se os personagens se reconhecem nessa história. E aí, nesses último encontro, filmamos a leitura desses capítulos. Eu nunca encontrei essas famílias da mesma forma que deixei. Toda vez que eu voltava elas estavam diferentes. Essa dor não é estática, o título do livro reflete isso. Aquela foi a noite em que tudo na vida deles parou. Algumas famílias transformaram o luto em luta, mas essa ausência é uma dor permanente. Algumas pessoas tentaram suicídio, outras faleceram algum tempo depois com doenças ligadas ao sofrimento. São várias perdas e os envolvidos não param de perder coisas. Da mesma forma que a fumaça continuou agindo nas pessoas que saíram vivas de lá, essa história é um tsunami que continua agindo na vida das famílias e sequelando fisicamente.

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