Aline Nunes e Viviann Barcelos
A dedetização de uma unidade de saúde na Serra atingiu cerca de 150 pessoas e levou à morte pelo menos 11 delas, que haviam sido intoxicadas pelo produto utilizado no procedimento. O episódio, conhecido como Caso Malathion, aconteceu em 1996, mas deixa marcas até os dias de hoje.
Pacientes convivem com dores, com sequelas de doenças como o câncer, com perdas de toda ordem. Esta é a segunda reportagem da seção Conexão 1928 - ano de fundação de A Gazeta - que vai resgatar grandes coberturas do jornal ao longo de seus 91 anos de história.
Em uma pequena casa na zona rural da Serra, a auxiliar de enfermagem aposentada Luzia Baldan, de 68 anos, mal consegue andar de um cômodo a outro. Sempre apoiada em uma bengala, a respiração lhe falta e é preciso se escorar, sentar. A aposentada também já precisou retirar 10 nódulos cancerígenos do braço esquerdo, perdendo parte de seu movimento.
A fala de Luzia é lenta e baixinha, quase não se ouve o que precisa dizer: Não aguento fazer nada. Não sou gente para cuidar do meu próprio corpo. Isso é muito sofrido. Luzia conta que quando chegou para trabalhar no antigo Centro de Saúde de Carapina, tinha um problema respiratório pequenininho. O quadro se agravou, segundo ela, a partir da dedetização - feita com um agrotóxico cuja substância é o organofosforado, e o Malathion faz parte desse grupo.
Para a auxiliar de serviços médicos aposentada Renecir Costa Penedo, 63, a maior covardia contra as pessoas que tiveram contato com o produto tóxico foi a falta de informação adequada. Fomos enganados. O médico que nos atendeu quando começamos a apresentar os sintomas disse que, em 90 dias, o veneno sairia do corpo. Ninguém sabia dos riscos. Ficamos cinco anos sem tomar um comprimido. Talvez, se tivessem nos tratado antes, não teríamos ficado assim, desabafa.
Renecir, que foi aposentada por invalidez aos 45 anos, teve câncer na carótida (artéria) e depois precisou retirar o útero em razão de um tumor. Graças a Deus já tinha tido minha filha. Várias mulheres perderam o útero, tiveram problemas de tireoide, de vista, conta. Hoje, entretanto, o que mais a afeta são as dores. Essa condição, diz Renecir, é difícil de sustentar, uma vez que, na aparência, nada indica que está doente. Então, nem sempre as pessoas acreditam no sofrimento pelo qual todos passam.
Conforme informações da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2001, entre janeiro e maio de 1996 foram feitas dedetizações no posto de saúde, a fim de combater o mosquito da dengue e matar ratos.
Todo o ambiente foi dedetizado por um inseticida denominado Malathion 500 CE Sultox pesticida pertencente à classe dos compostos organofosforados elevadamente tóxico, venenoso e degenerador, diz o documento. As aplicações eram feitas por volta das 4h, pouco antes do início do expediente, e sem orientação para os trabalhadores e para os pacientes.
O forte cheiro incomodava a todos, e logo após a aplicação, o óleo usado como meio para dispersão do veneno era visível nas paredes, nos móveis e até nas fichas de pacientes.
E assim os dias seguiram. Apenas em março de 1997, após mobilização de sindicatos da categoria, é que foi solicitada a interdição do posto. Na ocasião, foi feita inspeção pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e constatada a presença do Malathion.
Diante do quadro de saúde cada vez mais fragilizado, um grupo de servidores se organizou para conseguir assistência, mas foi apenas depois da ação do MPF que ocorreram algumas conquistas, como o direito à indenização. Em valores de 2007 (ano da sentença), sem reajuste, chegou até a R$ 200 mil.
Nesse processo, 42 pessoas estavam relacionadas. O advogado Hugo Ottoni Passos, que atua para a execução das indenizações, tem ainda outros 30 clientes com ações individuais tramitando, na expectativa de terem suas reivindicações atendidas.
O pagamento da indenização foi liberado somente em 2019, mas alguns, por necessidade, venderam há dois anos seus precatórios (documento que assegura o recebimento de pagamentos devidos pelo poder público) e, por isso, o valor foi reduzido a 60% do que teriam direito, e parcelado.
Precisava do dinheiro para sobreviver. Estava quase morrendo e o valor, que nem foi o que a gente pediu, não saía. Mas nunca foi pelo dinheiro, até porque saúde não tem preço, ressalta Dalila, que recebeu a indenização assim como Renecir. Luzia Baldan ainda aguarda.
Mais de 20 anos após a contaminação, o médico toxicologista Igor Vassilieff, de São Paulo, continua atendendo pacientes do Caso Malathion em seu consultório, em Avaré, no interior paulista. Por um período, o especialista ficou no Espírito Santo para prestar assistência, custeada pelo poder público, em razão de uma determinação judicial, agora suspensa.
Em entrevista para a reportagem de A Gazeta, Vassilieff, que é também professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp), diz que muitos têm comprometimento pela demora no início do tratamento, ou por não ter tido continuidade nos cuidados após a suspensão da decisão da Justiça. São distúrbios neurológicos, dores nas articulações, perda de força muscular e câncer.
O toxicologista conta que muitos dos pacientes que atendeu tinham no corpo, antes de iniciar o tratamento, componentes do Malathion e metais pesados, como mercúrio e arsênio, usados na dedetização do Centro de Saúde de Carapina. Levam anos para sair do organismo e deixam sequelas, afirma Vassilieff.
Para a auxiliar de serviços médicos Dalila Maria Justo, foi justamente o tempo prolongado do contato com o veneno e a falta de tratamento imediato que comprometeram sua saúde de maneira irreparável. Ela diz que, além de vestígios do Malathion, os exames de sangue apontavam a presença de arsênio, mercúrio e chumbo até pouco tempo. Fomos contaminados dentro do trabalho. Não tinham o direito de fazer isso com a gente , desabafa.
Se não bastassem as dificuldades do dia a dia, o hospital de referência para o atendimento de pacientes do Caso Malathion deixou de ser na Serra e agora é em Vila Velha, causando mais transtornos. Preciso fazer infiltração na coluna a cada seis meses para sentar. Tem dias que tomo morfina de tanta dor, e não resolve. Ter que fazer esse deslocamento só piora a nossa condição.
O pesticida Malathion 500 CE Sutox foi usado para combater o mosquito da dengue, no Centro de Saúde de Carapina, contaminando o total de 154 pessoas.
O Centro de Saúde é interditado. Laudo feito pela Unicamp constata que o local deveria passar por uma reforma completa, com troca de materiais, equipamentos e reboco.
Unidade é reaberta com base em outro laudo da Unicamp, contratada pela prefeitura, para analisar os danos provocados. Foi constatado que houve contaminação generalizada leve.
Um grupo de pessoas contaminadas esteve na OAB/ES para acompanhar o primeiro pedido de indenização junto à Justiça Federal, da auxiliar de enfermagem Maria Joevi Batista, que desejava ser ressarcida pela Prefeitura da Serra e pela Funasa.
O então prefeito Sérgio Vidigal se compromete a levar 32 pessoas para fazer exame na Universidade Estadual Paulista de Botucatu, SP. Se detectada a contaminação, o prefeito vai subsidiar tratamento de saúde para os funcionários intoxicados.
Resultados dos exames realizados em São Paulo confirmam a intoxicação crônica e apontam chumbo, ácido, piretróides, arsênio e organoclorado no sangue de cinco funcionários.
O Ministério Público Federal (MPF) abre um inquérito criminal para investigar as consequências das aplicações do pesticida Malathion dentro do Centro Médico de Carapina, no município da Serra.
Justiça decide que 40 vítimas que entraram com Ação Civil Pública movida pelo MPF serão indenizadas em até R$ 200 mil pela Funasa. Junto da Sesa e da prefeitura, fundação foi condenada a bancar todos os tratamentos dos afetados pelo pesticida.
Pela contaminação registrada no Centro de Saúde de Carapina, tanto a Prefeitura da Serra quanto o Estado e a União foram considerados culpados pela Justiça e, cada qual, precisou assumir a responsabilidade de parte da assistência devida às vítimas.
O incidente ocorreu em 1996, no último ano do mandato do prefeito João Baptista Motta, mas o problema só veio à tona no ano seguinte, quando Sérgio Vidigal já havia assumido a administração do município. Ele conta que algumas pessoas começaram a apresentar mal estar, reclamar muito do cheiro. O serviço de saúde do Ministério do Trabalho foi até o posto e sugeriu a contratação da Unicamp, que tinha um setor de toxicologia de referência para avaliação do ambiente.
Com a inspeção, que constatou a presença de Malathion meses depois da dedetização, o centro de saúde foi interditado. O prédio, onde hoje funciona o Centro de Referência Ambulatorial (CRA), só voltou a ser liberado após uma reforma que incluiu, entre outras intervenções, a raspagem das paredes para retirar o veneno que havia ficado impregnado.
O subsecretário de Saúde da atual gestão, Aldo Lugão, diz que, ainda hoje, o município oferece medicação àqueles que conseguiram comprovar a contaminação. Já a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) informou, por nota, que cabe ao órgão a oferta de transporte para pessoas com mobilidade reduzida, vale-transporte, acesso às consultas e exames de média complexidade para os pacientes em tratamento clínico e toxicológico.
A Advocacia Geral da União (AGU) esclareceu, também por nota, que a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) foi condenada a pagar indenização por danos morais às vítimas já identificadas na ação, além de outras que viessem a comprovar dano à saúde.
E ficou definido que deveria prestar assistência médica emergencial, especializada, psicológica e odontológica às vítimas. Dificuldades ou reclamações das vítimas têm sido investigadas pela 3ª Vara Federal de Vitória.
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