O porteiro Cristiano Oliveira, de 42 anos, foi vítima de injúria racial no prédio onde trabalhava, na avenida beira Mar, no Centro de Vitória. Ele não suportou as humilhações por parte de uma moradora e pediu demissão. Cristiano ainda procurou a polícia e denunciou a moradora, uma aposentada de 68 anos, por injúria racial.
Ela não aceitava que eu a ajudasse, falava coisas sobre minha pele e minha pessoa. Sempre me humilhava e me colocava para baixo. Suportei dois meses, conta a vítima, que cobria férias de um colega na época dos fatos (veja entrevista completa no fim da matéria).
DENÚNCIA
Quando Cristiano decidiu denunciar a aposentada à polícia, foi desencorajado por outros moradores do prédio. Ele enfatizou que sofre preconceito racial desde criança e que a situação piorou quando ficou mais velho e precisou procurar emprego. Quando um negro sai de manhã cedo para buscar seu alimento e sua dignidade, as portas não se abrem. Sou um ser humano, um pai de família e tudo o que eu peço é respeito, conclui.
O caso é investigado pela Delegacia de Santo Antônio, em Vitória. O delegado Fábio Pedroto deve concluir o inquérito na próxima semana e vai indiciar a aposentada Regina Célia Senff por injúria racial. Em depoimento na delegacia e durante conversa com a reportagem por telefone, ela negou todas as acusações e afirmou estar sendo vítima de perseguição dentro do condomínio.
Eu tenho uma irmã negra de criação e várias empregadas negras que trabalham aqui e nunca tive problema. Ele disse que estava comparando com um porteiro branco. Jamais eu faria isso. Todos somos iguais e vamos para o mesmo buraco quando morrer. Tem gente por trás disso. Por que será que estão me incomodando desse jeito?, disse.
ENTREVISTA: "ME SENTI UM LIXO"
A vítima conversou com a reportagem do Gazeta Online contou como aconteceram as atitudes racistas no local de trabalho.
Como começaram as injúrias?
Eu comecei a trabalhar nesse prédio e fazia tudo o que a empresa pedia. Mas, no decorrer da jornada, a moradora não aceitava eu ajudar, desfazia do meu trabalho, falava coisas sobre minha pele e minha pessoa, que preferia mais o outro porteiro que eu. Muitas vezes ela pedia à síndica para me trocar, porque não gostava de mim. Teve uma moradora que se sensibilizou com e veio me pedir perdão por ela e me deu um abraço. Não aceitou o que ela fez comigo. Sempre me humilhava e me botava pra baixo e criticava minha religião. Suportei dois meses. No terceiro já não deu mais, aí fiz um boletim aqui.
Você teve apoio dos outros moradores para fazer a denúncia?
Eu tive apoio de alguns moradores e da síndica também. Mas o interessante é que no decorrer da situação alguns moradores queriam que eu não fizesse isso. Mas eu senti que agi no meu direito. Sou um ser humano, um pai de família e tudo o que eu peço é respeito.
Como você se sentiu?
É horroroso. Para começar eu não pedi para nascer dessa cor, mas eu amo a minha cor e quero dizer que me senti um lixo. Já sofro há bastante tempo em vários locais. Por várias vezes eu falo que já pedi a morte por não ser aceito como eu sou. Mas é devido a minha cor mesmo. Quando passei por isso pela primeira vez me senti um nada. Ando de cabeça erguida, mas eu repito de novo: eu só quero respeito.
Você acha que falta muito para isso acabar?
Creio que sim. Por mais que a gente saia, frequente lugares e empresas, nós negros não somos respeitados ainda. Nosso lugar ainda não é aceito como deveria na sociedade.
Como é para conseguir emprego?
É difícil. Quando um negro sai de manhã cedo para buscar seu alimento e sua dignidade, para poder não roubar e nem furtar, as portas não se abrem. Um negro não é visto pela sociedade como deveria ser visto. Muitas pessoas nos julgam ainda e não deixam a gente viver nosso espaço. Mas não tem diferença. A única diferença é a cor.
INDIGNAÇÃO
Titular da delegacia de Santo Antônio, o delegado Fábio Pedroto disse que o caso envolvendo o porteiro Cristiano foi chocante e emblemático.
Como vocês receberam o caso do porteiro?
Isso nos causou uma grande indignação porque a gente percebe que essas questões relacionadas à discriminação racial estão mais presentes do que percebemos na nossa sociedade. Então, esse caso foi emblemático e para mim bem chocante porque não podiam trabalhar pessoas negras no prédio. Quando por engano, segundo uma moradora, a empresa responsável mandou um porteiro negro, começou a surgir uma série de problemas. Inclusive as pessoas se negando a receber ajuda do porteiro, como é o caso da aposentada. Diziam que ele era um porteiro bom. A questão envolveu somente a cor da pele.
O que essas práticas significam?
Esses atos configuram práticas racistas sistemáticas que vão diminuindo o valor que a pessoa tem, um profissional dedicado que não tem nenhuma mancha em seu currículo profissional. Por que ainda vivemos isso no Brasil? Em 2018, temos práticas racistas como essas e dizemos que somos um povo acolhedor e democrático? Onde está a democracia racial? Isso acontece mais do que imaginamos.
Qual a penalidade para esses crimes?
A pena por injúria racial, quando a pessoa se dirige à vítima, seja por meio de palavras, ou por meio de gestos, ou qualquer outro meio que indique uma prática discriminatória, essa pena vai até três anos de prisão. É o crime de injúria racial. O crime de racismo trata de forma mais grave, atentando contra a coletividade. Mas nesse caso foi uma conduta direcionada ao porteiro e a investigada será indiciada por injúria. Após o término do processo criminal, a vítima pode solicitar a reparação por danos morais.
CONSERVADORA E VIOLENTA
Segundo a professora de Sociologia Maria Angela Soares, a nossa sociedade tem dificuldade em aceitar o outro e essa característica tem origens históricas. A sociedade brasileira é conservadora, violenta, racista e machista. Isso ficou muitos anos escondido sob a capa de que o brasileiro é cordial e simpático, explica.
A especialista analisa que as redes sociais tiraram parte desse disfarce e expuseram a intolerância e a nossa dificuldade de nos colocarmos no lugar do outro. Agora as pessoas estão criando coragem de mostrar a cara. Até autoridades vão às redes sociais falar barbaridades. A gente não aceita que o outro é diferente, que a casa grande e a senzala existem até hoje, conclui.
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