O promotor da Infância e da Juventude de São Mateus (ES), Fagner Cristian Andrade Rodrigues, é alvo de uma representação junto à Corregedoria Nacional do Ministério Público por sua atuação no caso da menina capixaba de 10 anos cujo aborto, fruto de um estupro, foi autorizado pela Justiça do estado.
A peça, de autoria dos deputados federais Chris Tonietto e Filipe Barros, ambos do PSL, pede a abertura de procedimento administrativo disciplinar contra Rodrigues, acusando-o de indução a e coautoria de procedimento de aborto. Tonietto e Barros são, respectivamente, presidente e vice da Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida.
Pelo Código Penal brasileiro, o aborto está autorizado em casos de estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia do feto, independentemente da idade da gestante. A criança capixaba cumpria as duas primeiras condições.
Ainda assim, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), de Vitória, se negou a realizar o procedimento, se amparando em portaria do Ministério da Saúde que recomenda avaliar o atendimento em casos de mais de 20 semanas de gestação ou peso fetal inferior a 500 gramas.
A menina só conseguiu realizar o aborto legal no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros) do Recife (PE), ao qual precisou chegar escondida no porta-malas do carro devido aos protestos de grupos religiosos. Depois de ter tido seu nome e endereço vazados, a criança entrou no Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas no Espírito Santo.
A representação, aberta com uma citação bíblica ("Eu vim para que todos tenham vida", do Evangelho de São João), questiona a "motivação jurídica para se encaminhar uma menor que estava sob a responsabilidade do Ministério Público do Estado do Espírito Santo para uma Unidade da Federação o qual ele não tem atribuição".
"Dentre tantos hospitais existentes na capital do estado, por que se decidiu por um estado diverso daquele onde exerce suas funções? Ultrapassados os limites territoriais/jurisdicionais não há mais que se falar em curadoria do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. A criança passou a estar, então, desprotegida", alega o texto.
O documento questiona se houve consentimento da criança para o aborto -segundo noticiário, a avó, como sua representante legal, consentiu a realização do procedimento, e a própria menina também. Por se tratar de menor de idade, o processo na Vara da Infância e da Juventude é sigiloso.
"Restaria configurada, em tese, a prática do crime previsto no artito 125 do Código Penal e, na esteira desse raciocínio, os atos perpetrados pelo (...) promotor teriam sido condição sine qua non para a ocorrência do ato praticado no Hospital do Cisam, na cidade de Recife/PE. Sua contribuição teria sido essencial à prática do delito penal em tese, o que o colocaria como coautor do aborto provocado na menor", diz o texto.
O artigo citado prevê pena de reclusão de três a dez anos por "provocar aborto, sem o consentimento da gestante".
A representação pede ainda que, "havendo indícios suficientes de autoria e materialidade do delito previsto no art. 125, do CP, ou qualquer outro delito", os autos do processo administrativo sejam "encaminhados ao Procurador-Geral de Justiça do MP/ES para oferecimento de denúncia", o que poderia dar origem a um processo criminal.
"Tem questões nebulosas nesse caso, que infelizmente foi polemizado e objeto de disputa ideológica, que a gente acha que merecem ser investigadas", afirmou o advogado Douglas Kirchner, que representa os dois deputados.
"Não é uma questão simples, ocorreu um estupro a gente tem que abortar. Até porque é uma solução desproporcional. A frente parlamentar entende que as duas vidas deveriam ser preservadas", disse.
"A nossa legislação coloca o aborto como uma questão excepcional", argumentou Kirchner. Ex-procurador, o advogado foi demitido do Ministério Público Federal em 2016 após denúncia de violência doméstica. Na época, foi defendido pela hoje deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP).
O documento cita a portaria ministerial para defender que a criança tivesse levado a gravidez adiante e posteriormente entregue o bebê a adoção.
"Entendo que não houve indução ao aborto, uma vez que o Código Penal está acima da portaria do MS e ele não faz nenhuma restrição ao aborto decorrente de estupro. Assim, havendo estupro, independentemente do peso fetal e idade gestacional o aborto pode e deve ser realizado se assim a gestante e vítima do estupro desejar", afirmou a juíza Tatiane Moreira Lima. "
?O advogado Ariel de Castro, especialista em direitos humanos, classificou a acusação como "incabível", posto que o promotor agiu com base na lei. "É uma tentativa de intimidação e criminalização do promotor, desencadeada por grupos fundamentalistas religiosos ligados ao governo Bolsonaro", afirmou.
Procurado, a CNMP informou que os processos que tramitam aí podem ter acesso restrito somente às partes e que, neste caso, a reclamação disciplinar é sigilosa.
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