> >
Entenda a deserção no caso do PM capixaba expulso de reality e preso

Entenda a deserção no caso do PM capixaba expulso de reality e preso

Faltas ao trabalho fizeram com que Fellipe Villas tivesse o salário bloqueado no fim do mês de maio e terminasse  preso antes mesmo do fim de A Grande Conquista

Publicado em 19 de julho de 2024 às 07:20

Ícone - Tempo de Leitura 8min de leitura

Expulso do reality show A Gande Conquista, da Record TV, e preso na última sexta-feira (12) em São Paulo, o soldado da Polícia Militar do Espírito Santo Fellipe Pedrosa Leal Villas está sendo investigado por deserção, resultado da ausência dele no trabalho como policial. Conforme apurado pela reportagem, o PM teve o salário bloqueado no fim do mês de maio e contra ele havia um mandado de prisão preventiva em aberto desde o dia 26 de junho por deserção. A Gazeta foi atrás de informações para explicar o que é o crime de deserção militar e no que ele implica.

Na sexta-feira (12), a Record TV divulgou que o soldado havia sido retirado do programa por "infringir normas militares". O soldado chegou a pedir à corporação para entrar no reality, mas não foi autorizado. Fellipe tirou férias entre abril e maio, e, após esse período, como não se apresentou para trabalhar, foram abertos dois procedimentos internos na corporação: uma sindicância e um processo por deserção. O policial seguiu no programa de TV sem receber salário.

Soldado Fellipe Villas foi retirado da disputa de reality na TV
Soldado Fellipe Villas foi retirado da disputa de reality na TV. (Instagram @fellipevillas)

O pedido de prisão cita que a falta ao serviço "atenta contra a hierarquia" da corporação militar. O juiz explica que o período de "ausência injustificada" superou o prazo de oito dias – momento em que a conduta passa a ser considerada delito de deserção.

A Gazeta consultou especialistas, que apontaram, sobretudo, a diferença entre militares e civis quando o assunto é a falta ao trabalho. A deserção militar tem características específicas.

O que é o crime por deserção?

Segundo o coronel da reserva da Polícia Militar Rogério Lima, especialista em segurança pública pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o crime de deserção tem características específicas. A inexistência de uma ou mais condições inviabiliza que a suposta atitude de um militar tenha esta classificação.

A classificação de deserção militar requer:

  • Só comete o crime de deserção um integrante da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros. Não há esta classificação, com este nome, para civis, que exercem outros empregos como médicos, jornalistas, professores, entre outros.
  • Para haver o crime de deserção, é preciso que o militar seja do quadro de ativos da corporação. Um militar da reserva não poderia, pela regra, ser enquadrado no crime.
  • Para que o militar seja enquadrado no crime de deserção, a falta ao trabalho precisa ter ultrapassado o período de oito dias. Um militar que tenha faltado sete dias seguidos, por exemplo, não responde pelo crime de deserção.
  • O crime de deserção é, necessariamente, doloso. Isso significa que é preciso provar que aquele militar faltou por opção e com consciência.
  • A ausência no trabalho só vira deserção caso o militar não tenha autorização para faltar. Se ele estiver de licença, com autorização da Polícia Militar, não há deserção

O coronel da reserva da Polícia Militar Gustavo Debortoli ressalta que um dos artigos do Código Penal Militar estabelece que o militar desertor só recebe esta classificação caso não tenha justificado a ausência. "Consumado o crime de deserção, o comandante da unidade ou autoridade correspondente deve lavrar um auto de deserção", afirma.

Na comparação entre o Código Penal Militar e a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), é possível notar algumas diferenças. Uma delas é o período da ausência. Para os civis, o período é maior, há mais tolerância. O artigo 482 da CLT, item i, estabelece que o abandono de emprego constitui justa causa para rescisão do contrato de trabalho. Como regra geral, não há um número exato de faltas, mas sim a exigência de 30 dias consecutivos de ausência do colaborador.

Por que o crime de deserção é tão grave?

Na avaliação do coronel Rogério Lima, a deserção fere a ética e os valores militares. O oficial da reserva explica que a deserção está prevista desde o Império Romano, quando já havia explicações para casos semelhantes.

Aspas de citação

É um crime contra o serviço militar e contra o dever militar. É ferir algo muito grave, porque é a defesa da sociedade, no caso dos policiais militares

Rogério Lima
Coronel da reserva da PM
Aspas de citação

O coronel Rogério Lima ainda ressalta que o crime é, necessariamente, um ato doloso. Isso quer dizer que, caso o militar tenha sofrido um acidente, por exemplo, e não avise à corporação, não há justificativa para punição. Ato culposo, quando não há intenção, não entra na classificação de deserção.

Deserção pode resultar em prisão?

A prisão do soldado Fellipe Villas, expulso de um reality show, representa o que pode acontecer em casos de deserção. A ausência no trabalho por muitos dias resulta em punições, como a prisão. O coronel Rogério Lima explica que o crime tem caráter permanente. Isso quer dizer que há o flagrante e o militar desertor pode ser preso a qualquer momento e em qualquer lugar.

Soldado Fellipe Villas foi retirado da disputa de reality na TV
Soldado Fellipe Villas foi retirado da disputa de reality na TV. (Instagram @fellipevillas)

No caso do solado Fellipe Villas, preso na última sexta (12), havia um mandado de prisão preventiva contra ele, expedido dias antes. Acontece que, de acordo com o coronel, mesmo que não houvesse o mandado, o militar poderia e deveria ser preso.

Aspas de citação

É um crime de flagrante permanente. Neste caso [do PM Fellipe Villas] havia um mandado, mas não precisa. Como é um crime de efeito permanente, há o flagrante em qualquer momento e qualquer local, por isso ele pode ser preso

Rogério Lima
Coronel da reserva da PM
Aspas de citação

Procurada pela reportagem desde a prisão do soldado, a Polícia Militar tem informado que ele foi detido em São Paulo e seria encaminhado ao Espírito Santo nos próximos dias. Não há, até esta quinta-feira (18), informações sobre a vinda do soldado para o Estado.

Como é a contagem do prazo até o 8º dia?

Segundo o coronel Rogério Lima, a ausência do militar no primeiro dia já gera uma espécie de comunicado interno. A Polícia Militar tem como prática registrar em documentos as faltas, tornando oficial tudo que acontece no cotidiano da corporação. "Quando há a falta, o comandante precisa fazer a comunicação disciplinar da falta. E aí começa a contar o prazo. É preciso contar oito dias. Completando este período, o militar pode ser considerado desertor", explica.

Uma tabela explica como é feita a contagem das faltas. A explicação, contida no livro Manual de Direito Penal Militar, mostra que a ausência passa a ser considerada ilegal à zero hora do dia seguinte à primeira falta.

Explicação sobre ausências está descrita no livro Manual de Direito Penal Militar
Explicação sobre ausências está descrita no livro Manual de Direito Penal Militar. (Reprodução | Manual de Direito Penal Militar)

Se entre os militares é importante o registro da falta, na vida do civil, também. Independente se o patrão conseguiu ou não contato com o profissional ausente, e se há ou não uma razão válida para a falta, é sempre importante que a falta seja devidamente registrada.

A farda e a arma ficam com o PM?

Há um procedimento classificado pela Polícia Militar como inventário. É neste processo, segundo o coronel Rogério Lima, que a corporação faz um levantamento dos materiais, como a farda e a arma, que estão com o policial militar ausente. A ideia é ter ciência do que foi cedido para o trabalho, mas não foi entregue. Estes itens não ficam com o PM caso ele saia da corporação.

"É preciso fazer um inventário, saber o que está com o policial. Pistola, carregador, colete, a farda... o que pertencer à fazenda pública e estiver com o militar precisa ser arrolado ao processo. Estes itens não podem ser usados por terceiros", afirma o especialista.

A PM procura o militar desertor?

O coronel Rogério Lima explica que a Polícia Militar procura o indivíduo antes mesmo de ele ser considerado um desertor. Após a realização do inventário, a corporação precisa fazer diligências até o oitavo dia.

"O militar pode estar com vontade de se ausentar, mas há outros cenários. Ele pode estar acamado, ter se acidentado, estar preso... então é preciso fazer diligências para encontrar o militar. São necessária, no mínimo, três diligências para ver se a corporação encontra o militar. Ele é procurado, por exemplo, em hospitais", pontua o coronel.

Caso ele seja encontrado, segundo o coronel Gustavo Debortoli, a autoridade militar deve comunicar à Justiça militar. É preciso informar a data e o local onde o militar se apresentou ou foi capturado. A partir disso, a corporação segue a investigação e o julgamento.

Qual a pena para um militar desertor?

Os especialistas procurados pela reportagem de A Gazeta pontuam que a pena para um militar desertor é de prisão entre seis meses e dois anos. Em casos mais graves, o militar desertor pode ser excluído da Polícia Militar.

Há algum caso de exceção?

A ausência não significa, necessariamente, o crime de deserção. Conforme explicado pelo coronel Rogério Lima, há casos em que os policiais solicitam licença, com ou sem remuneração, e podem se ausentar do trabalho. Mas, para que isso aconteça dentro da legalidade, o militar precisa ter mais de dez anos de carreira na corporação. O soldado Fellipe Villas, por exemplo, tinha menos de dez anos na Polícia Militar e não poderia ter recebido a licença legal.

O que diz a Polícia Militar

Desde o último dia 12, há uma semana, a reportagem tem demandado a Polícia Militar do Espírito Santo para ter informações a respeito da transferência do soldado Fellipe Villas. Inicialmente, a corporação informou que não tinha detalhes sobre a transferência dele, mas que o soldado continuava preso em São Paulo.

Na quinta-feira (18), A Gazeta voltou a procurar a Polícia Militar, considerando as explicações das fontes sobre o processo de deserção. Em nota, a corporação informou que as ações para a transferência do policial militar para o Espírito Santo estão sendo adotadas e que, quando chegar ao Estado, Fellipe Villas ficará no presídio militar, localizado no Quartel do Comando-Geral, em Maruípe, Vitória.

A Polícia Militar ainda informou que o soldado responde judicialmente pelo crime de deserção. Na esfera administrativa, há a possibilidade, segundo a polícia, de desligamento do soldado da corporação. "O crime de deserção é julgado pela Justiça Militar Estadual, nos ritos da Auditoria da Justiça Militar Estadual. Não temos como precisar o tempo que durará o processo", informou a PM em nota.

Conforme explicado nesta reportagem, o crime de deserção tem caráter permanente, ou seja, o policial que está ausente pode ser preso a qualquer momento e em qualquer lugar. Questionada sobre a data da prisão, a Polícia Militar informou que "a decisão pela prisão obedeceu a critérios de oportunidade e conveniência, sendo apoiada pelo comando da Polícia Militar de São Paulo. A ordem judicial dá segurança na operação, que envolve outros agentes públicos, fora do Estado do Espírito Santo".

Por fim, a Polícia Militar informou que os materiais da fazenda estadual, como a farda e a arma do soldado, devem ser recolhidos em caso de deserção.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais