A técnica em Segurança do Trabalho, Luana Demonier, 25 anos, foi assassinada pelo ex-namorado. O nome nessa frase poderia ser substituído pelo meu, pelo da sua melhor amiga, o da sua mãe, da vizinha ou de qualquer outra mulher que faz parte da sua vida. Luana foi morta apenas por ser mulher, crime tipificado como feminicídio, cometido por Rodrigo Pires Rosa, na noite de terça-feira (9), em Cariacica.
A jovem tinha medida protetiva para que o ex se mantivesse longe, e contra ele havia denúncia de pelo menos outras cinco vítimas por ameaça ou agressão. Ainda assim, Rodrigo estava solto e matou a ex-companheira com 19 facadas. Diante da barbaridade, fica a pergunta: essa morte poderia ter sido evitada?
Leis existem e recursos para impedir a ação de homens violentos também. Mas a redução da violência doméstica e, por consequência, dos casos de feminicídio passam ainda por uma mudança mais profunda em toda a sociedade, com a educação de meninos e meninas sem o viés machista impregnado na cultura brasileira.
A aplicação da lei, às vezes, não é tão efetiva para prevenção de crimes dessa natureza. "Em situações como essas, de agressão e ameaça, pelas quais ele foi indiciado várias vezes, vemos que são delitos que não geram prisão, pois não são crimes de grande monta. A violência física contra a mulher só é punitiva fortemente quando ocorre o feminicídio ou uma lesão grave. Por mais que ele tenha outros processos, eles correm separadamente", explica a professora de Direito, advogada e também psicóloga Sátina Pimenta. Com a morte, Rodrigo foi preso.
Essa separação de processos é uma das críticas feitas ao Judiciário pela professora de Direito Brunela Vincenzi. A celeridade também poderia ter ajudado a manter Luana viva.
"O aparato do Poder Judiciário poderia ser mais rápido e não valoriza tanto as condutas agressivas contra mulher. São juízes e promotores homens que muitas vezes não querem aplicar a Lei Maria da Penha, pois no próprio Poder Judiciário há uma descrença", observa Vincenzi, que também é Coordenadora do Laboratório de Pesquisa de Violência Contra Mulher do Espírito Santo (LAPVIM), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Luana tinha medida protetiva, mas nem mesmo assim Rodrigo deixou de fazer ameaças à vítima. Desde 2019, o descumprimento implicava na sua prisão. Ele chegou a ser preso em flagrante, em junho de 2020, mas foi posto em liberdade em setembro do mesmo ano. Rodrigo continuou a ameaçar a ex e, na terça, quando a técnica em segurança chegava em casa, foi esfaqueada.
"A medida protetiva é para urgência, e não é 100% efetiva. Uma determinação do juiz não resolve um ciclo todo de violência, mas reduz as possibilidades. A medida é um recado para o agressor e para a sociedade, mas ela não consegue romper com a lógica patriarcal e machista que está na cabeça do agressor. Mas é um alerta para ele sem ser preso, uma chance para o autor de conviver com o mundo, e do Estado mostrar que esta vítima não está sozinha, que alguém olha por ela", pondera Renata Bravo, professora de Direito e especialista em trabalhos de igualdade de gênero.
A professora acredita que um acompanhamento mais próximo desse agressor poderia ter sido uma medida para evitar a morte de Luana.
"Ela foi atendida pela polícia e pelo Judiciário. O que pode ter faltado seria a amplitude dos serviços de atendimento a todo o ciclo de violência, como grupos reflexivos para homens agressores, projetos como 'Homem que é Homem' o que, talvez, pudesse ter sido evitado termos mais uma mulher morta", avalia Renata Bravo.
Para Winy Fabiano, coordenadora do coletivo Mulheres Unidas de Caratoíra (Muca), é necessária a proteção da mulher e a mudança de cultura. "Quando a gente vive em um país em que a mulher ainda é objetificada, precisamos pensar o que há de errado na nossa cultura. O processo de desconstrução do machismo e do patriarcado, e também o empoderamento dessas mulheres para uma nova construção do que seria uma relação", pontua.
A medida protetiva que Luana possuía, proibindo Rodrigo de se aproximar dela, tinha como base a Lei Maria da Penha, um dos principais instrumentos de proteção para as mulheres. Ela reúne artifícios que visam acolher e atender as necessidades de vítimas de violência doméstica, mas que precisam ser executadas, segundo a professora Sátina Pimenta.
"A Lei Maria da Penha trouxe um aumento de denúncias de mulheres que eram agredidas, pelo fato delas se sentirem protegidas. A lei traz formas e medidas que podem ser tomadas e realizadas, mas precisam ser executadas, onde entra o Legislativo, Executivo e Judiciário. No Espírito Santo, uma delas é o uso de tornozeleira eletrônica para as pessoas que possuem medida protetiva de afastamento, e a Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar, que faz o mapeamento de onde moram as vítimas, além do botão do pânico", descreve a professora.
Para Sátina, se esses recursos tivessem sido efetivos, Luana poderia ainda estar viva. "Tudo isso está nascendo ainda, não é uma realidade para todas as vítimas de violência doméstica, pois não se dá tanta executividade à Lei Maria da Penha."
Brunela Vincenzi ressalta que as mulheres vítimas de violência precisam se fortalecer, e uma das alternativas é criar uma rede de proteção familiar para complementar os mecanismos do Estado.
"A rede de familiares e amigos para que a vítima possa avisar por onde está andando ou ser acompanhada. Não é o que queríamos recomendar, pois é dever do Estado garantir a segurança e a integridade da vítima. Um Estado com uma estrutura que não funciona, assume a sua incapacidade e transfere para vítima a sua responsabilidade", enfatiza.
A professora Renata Bravo afirma que saber de mais um feminicídio no Espírito Santo é ter a sensação de "enxugar gelo", já que, no caso de Luana, ela acredita que tanto a polícia quanto o Judiciário fizeram a parte que lhes cabia.
"É uma impotência da sociedade que não dá conta de um problema sistêmico: a cultura de matar mulheres por serem mulheres", lamenta.
Para Winy Fabiano, o feminicídio é a ponta de uma relação que já vem sendo abusiva em uma escala de outras violências, como agressão, que sucede à violência patrimonial, que já passou da fase da violência psicológica.
"A Lei Maria da Penha tem brechas. Até mesmo quando o agressor é preso, em algum momento ele terá que voltar ao convívio social. Mas, mesmo com as leis e medidas, o problema vai muito além. A maior parte do erro é a formação de homens machistas, e que gera a ideia da mulher como propriedade", completa.
Para evitar que a vida de outras "Luanas" sejam tiradas, a professora Brunela aposta na educação. "É difícil mudar cultura, em especial de pessoas mais velhas. Uma grande contribuição é ensinar desde cedo, levando para as escolas esse tema sobre gênero, direitos e proteção às mulheres", conclui.
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