Esse foi um dos desabafos que a jovem Celina Conceição Braz, de 25 anos, deixou anotado em um diário antes de ser espancada até a morte pelo marido, o pedreiro Rodrigo Costa da Silva, 32, na noite da última sexta-feira (12), em Rio Marinho, Cariacica. Após o assassinato cruel, a irmã da vítima encontrou as anotações na bolsa de Celina. Vivendo todos os ciclos de uma relação abusiva e cada vez mais distante da família, ela narrou dias de dor, tristeza e saudade das pessoas que amava.
Celina, assim como tantas mulheres que vivem em relações abusivas, passou por todos os níveis de violência até a morte, da psicológica à física. E viveu, diversas vezes, esse ciclo - que também passa pelos pedidos de desculpas, promessas de mudança, fase da lua de mel, até o retorno para a violência.
Natural de Ilhéus, na Bahia, e mãe durante a adolescência, Celina precisou começar a trabalhar cedo para tentar dar o melhor para a filha, hoje com 11 anos. Com o sonho de pagar uma escola particular e aulas de piano para a menina, que mora com a bisavó na Bahia, a jovem veio ao Espírito Santo em busca de um emprego e estava feliz em começar o primeiro trabalho de carteira assinada nesta segunda-feira (15), dia em que foi enterrada.
"Em Ilhéus, emprego é muito difícil e ela já tentou outras vezes emprego no Espírito Santo. Ela não tinha medo de trabalhar, aceitava tudo, entregava panfleto, trabalhou em restaurante... Mas até então, só ele conseguiu emprego fixo, como pedreiro, por uma indicação minha. Várias vezes ele jogou isso na cara dela. A nossa família oferecia ajuda, mas ela sempre dizia que não queria incomodar e sofria tudo sozinha", contou Quetzia Eloá Braz, irmã da vítima.
Em uma página do diário, Celina escreveu uma mensagem para a filha, onde mostrava ser capaz de enfrentar qualquer dor para conseguir dar o melhor para a menina.
De acordo com Quetzia Eloá Braz, irmã da vítima, a relação de Celina com o marido era marcada por um ciúme doentio. Antes de espancar a jovem até a morte, ela conta que Rodrigo fez diversas violências psicológicas e verbais contra a vítima durante cerca de dois anos que eles ficaram juntos.
As violências físicas também passaram a ser frequentes na relação. Inclusive, Rodrigo chegou a ser preso na Bahia por bater em Celina. Mas segundo Quetzia Eloá Braz, ela só foi saber disso quando a irmã foi morta. No Espírito Santo, ela presenciou uma única agressão. Porém, após o crime, vizinhos contaram que as agressões eram constantes.
"Foi a primeira e última briga que eu presenciei. Foi por ciúmes. Eu me meti e disse que não ia admitir ver isso contra a minha irmã, na minha casa. Conversei com ela, falei que ele ia acabar matando ela desse jeito. Mas ela dizia que ele não a mataria, porque ele era medroso e não matava nem uma barata. Depois da morte, os vizinhos contaram que as agressões eram frequentes, mas que todos da região achavam que aquilo era normal", lembra.
No diário, Celina chegou a narrar que não aguentava mais a relação e que confessou que não estava feliz vivendo presa naquele ciclo. "Não quero mais você. Cansei de suas mentiras. Viva a sua vida. Quero viver a minha longe de você. Não estou me sentindo bem ao seu lado".
E conforme as violências evoluíam, mais Celina se afastava da família. O comportamento é comum em vítimas de violência doméstica para tentar evitar levar preocupação aos familiares e fugir de julgamentos por não conseguir abandonar a relação de dependência emocional e financeira.
"Ela sempre dizia que estava tudo bem quando eu ia falar alguma coisa dele. Acho que isso tudo foi uma mistura de medo, ameaças, vergonha, por não querer nos preocupar, por depender financeiramente dele. Sem contar que ela acreditava mesmo que ele ia mudar. Quando eu disse a ela que não queria mais falar com ele, ela se afastou de mim. Depois da morte, amigas dela da Bahia disseram que ela desabafou e pediu ajuda para sair dessa relação. Minha irmã conseguiu contar para as amigas, mas não conseguiu contar para mim, que estava perto", lembra.
Sem ter coragem de contar para a família o que estava enfrentando, ela desabafou no diário pedindo forças para Deus e falou sobre a saudade que sentia das pessoas que amava.
E após cada violência, antes mesmo que Celina conseguisse reunir forças para pedir ajuda, ela passava por um ciclo comum em meio as violências domésticas: a fase da lua de mel, que acontece após o agressor pedir desculpas, fazer promessas de mudanças, e até mesmo pedindo ajuda para isso.
"Ela tinha um coração muito bom e sempre ficava com pena dele. Porque ele dizia que não tinha ninguém, que precisava dela. Celina acreditava que as pessoas poderiam ser melhores. Quando eu fui na Bahia e o conheci, ela me disse que ele queria trabalhar e me pediu ajuda de emprego em Vitória. Eu ajudei. Consegui um emprego pra ele como pedreiro. Emprego que ele ficou até o dia que matou minha irmã. Ela deu oportunidade, acreditou nele e foi embora pelas mãos dele", lembra.
De acordo com Quetzia, após as agressões, Rodrigo pedia uma última chance e chegava a dizer que Celina poderia decidir tudo sobre a vida dele, que ele obedeceria. Dizia que iria mudar e que queria construir uma família e ser feliz ao lado da mulher.
Em uma das páginas do diário, Celina escreveu o trecho de uma música que fala sobre decepção e desejo de ter um relacionamento saudável, com carinho e amor. No topo da página, ela ainda escreveu os nomes da filha e da sobrinha - que moram na Bahia, em uma possível demonstração de saudade.
O sonho de ser feliz, vivendo uma relação saudável e com dependência financeira, foi interrompido no Dia dos Namorados (12). Na última segunda-feira (15), quando começaria o primeiro emprego de carteira assinada na sessão de frios de um supermercado de Vila Velha, Celina foi enterrada.
Lidando com casos como o de Celina há 25 anos, a juíza Herminia Azoury, coordenadora estadual de enfrentamento à violência doméstica e familiar do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), afirmou que o grande dificultador para que mulheres consigam sair de uma relação abusiva é a dependência afetiva, que ela comparou aos casos de dependência química.
Sabendo da dificuldade que é sair de um ciclo de violência, a juíza contou sobre o projeto que dá atendimento psicológico gratuito por telefone para mulheres vítimas de violência doméstica durante a pandemia do novo coronavírus no Espírito Santo. O projeto foi desenvolvido pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comvides) do TJES, em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), psicólogas voluntárias e ArcelorMittal Tubarão.
O atendimento é realizado por ligação ou mensagens instantâneas em cinco números diferentes, que fica com psicólogas voluntárias. Qualquer mulher que for vítima de violência pode entrar em contato, independente se ela já tenha ou não denunciado. Caso a mulher não tenha créditos para ligar, a ligação pode ser feita a cobrar. Nesses casos, a psicóloga vai desligar a ligação e retornar para o número que fez o contato.
A Juíza também alertou sobre a importância de toda a sociedade estar atenta aos sinais para denunciar quando desconfiar que a mulher está sendo vítima. Já que muitas vezes ela não tem forças para fazer uma denúncia sozinha, a população pode ajudar a interromper esse ciclo e evitar, até mesmo, que a vítima perca a própria vida. Celina, por exemplo, gritou por duas horas enquanto era espancada, até ser morta. Os vizinhos chegaram a gravar áudios dos gritos, mas ninguém ligou para a polícia.
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