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Piedade: moradores expulsos por traficantes vão processar o Estado

Piedade: moradores expulsos por traficantes vão processar o Estado

São 24 famílias, que enfrentaram dias de tiroteios, agressões e constantes ameaças, pedindo a tutela do direito de moradia em uma ação conjunta

Publicado em 18 de agosto de 2018 às 01:05

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Após saída de moradores, Polícia Militar ocupou a região. (Fernando Madeira )

Após sofrerem com o terror imposto pelo tráfico de drogas, moradores do Morro da Piedade, em Vitória, que foram expulsos da região pelos criminosos em junho deste ano, vão entrar com uma ação judicial contra o Estado e a Prefeitura da capital.

São 24 famílias, que enfrentaram dias de tiroteios, agressões e constantes ameaças, pedindo a tutela do direito de moradia em uma ação conjunta.

Famílias expulsas da Piedade por traficantes vão processar o Estado e Município

De acordo com a Defensoria Pública do Espírito Santo, através do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia, no dia 4 de julho de 2018 foi feito o atendimento das famílias que foram expulsas ou sofreram ameaças por parte de grupos de traficantes no Bairro da Piedade.

O objetivo da ação judicial, segundo a defensoria, é reduzir os danos de vulnerabilidades sociais dessas pessoas. Questionada sobre como seria a tutela do direito de moradia, a defensora pública Maria Gabriela Agapito explicou que isso ainda está sendo analisado com os moradores. Não é possível afirmar, por exemplo, se a ação irá pedir novas casas aos moradores, um aluguel social ou uma ajuda de custo.

A defensoria também não detalhou qual seria a participação exata da Prefeitura e do Estado no pedido da tutela para evitar antecipação da ação sem fundamento jurídico.

TERROR

O Morro da Piedade enfrentou uma intensa disputa de criminosos pelo tráfico local. Só este ano, a guerra resultou na morte de quatro pessoas, inclusive dos irmãos Ruan e Damião Reis que, segundo a polícia, não tinham relação com a criminalidade.

No dia 9 de junho, após a morte de Wallace de Jesus Santtana, considerado o braço direito do traficante João Paulo Ferreira Dias, o “dono do morro”, moradores foram ameaçados pelos traficantes que cometeram o crime.

Aos gritos, eles deram um prazo de uma semana para os moradores saírem do morro. Com medo, mais de 180 pessoas fugiram da comunidade, segundo o Instituto Raízes. João Paulo foi preso no dia 12 de julho durante operação da Polícia Civil.

“Os relatos, intensos e emocionados, trouxeram à tona a tragédia pessoal de cada um desses moradores; famílias que há anos residiam na Piedade, mas que, de forma abrupta, tiveram que deixar as suas casas. As gravíssimas circunstâncias impuseram-lhes uma difícil escolha: abandonar os seus lares para preservar a integridade física e a vida de suas famílias”, divulgou a defensoria, por nota.

A Defensoria Pública completou, em nota, que a presença do Estado deve se fazer não só com segurança pública, mas com a garantia de todos direitos sociais previstos na Constituição e Tratados Internacionais, pois “quando o estado deixa de prover direitos básicos como moradia, saúde, educação, esporte e lazer, os conflitos sociais se intensificam e dão azo (oportunidade) ao que é conhecido como Estado Paralelo”.

DEPOIMENTOS

A defensora pública Maria Gabriela Agapito, que atua Núcleo de Defesa Agrária e Moradia, afirma que as agressões, ameaças e expulsões do morro resultaram em uma ruptura do cotidiano dos moradores da Piedade.

“Ouvi relatos de violência extrema. São famílias que não tinham nenhum envolvimento com crime e foram aterrorizadas a sair do morro. Há casos até onde o município fez reformas de adaptação na casa de moradores, que ficaram felizes com a vitória, mas tiveram que fugir e abandonar a habitação”, lembra.

REUNIÃO

A defensora contou que foi pedida uma reunião com representantes do governo estadual e com a prefeitura de Vitória para tratar das vulnerabilidade dessas famílias.

“Queremos tratar de problemas como crianças que tiveram que sair das escolas próximas do morro, a dificuldade que as famílias estão enfrentando em se manter em abrigos ou casas de favor, pessoas que tiveram que sair do próprio município para se reerguer. Buscamos uma resposta do poder público, enviando ofícios, mas até momento não recebemos nenhum posicionamento. De qualquer forma, vamos seguir trabalhando na ação, que está em andamento” afirmou.

MEDO DE VOLTAR AINDA É GRANDE

Das mais de 180 pessoas que saíram do Morro da Piedade, em Vitória, após sofrerem ameaça de traficantes, a grande maioria não teve coragem de voltar. A informação é do Instituto Raízes da Piedade, que desenvolve ações sociais na região, e afirma que por mais que a situação na comunidade esteja aparentemente tranquila, os ex-moradores ainda sentem medo.

De acordo com Jocelino Júnior, coordenador do instituto, aparentemente, o morro está tranquilo.

Ele afirma que a Polícia Militar está no local e nos últimos dias, com os casos de tiroteios em outros morros de Vitória, um helicóptero da PM sobrevoa a região da Piedade e Fonte Grande todas as noites. Mesmo assim, o trauma continua.

“Hoje mesmo (ontem) recebi a ligação de um ex-morador perguntando como estava a situação no morro. Ele disse que estava passando dificuldades para pagar um aluguel, mas que não se sente seguro para voltar. Aparentemente, o morro está tranquilo, mas sabemos que as coisas acontecem de forma velada e o trauma da violência continua na realidade de vive e viveu ali”, contou Jocelino Júnior.

Em junho de 2018, quando os moradores foram ameaçados e expulsos por traficantes, o Instituto Raízes realizou um levantamento que mostrou dados alarmantes sobre a saída de moradores na região.

Segundo o Instituto, somente em 2018, após o acirramento pela disputa pelo tráfico no local, 32 casas foram abandonadas e mais de 180 pessoas deixaram o bairro.

A área conhecida como “Seu Queiroz”, no alto do morro, foi a que sofreu o maior impacto, com 90% dos moradores deixando as residências.

Ainda de acordo com o Instituto, na época, as três escolas da região já somavam baixa frequência dos estudantes, pedidos para guardar vagas para as famílias se reorganizarem, além de 20 solicitações de transferências.

O medo instaurado no Morro da Piedade, devido à guerra do tráfico, se estendeu à comunidade vizinha, o Morro do Moscoso. Em junho, famílias da comunidade também saíram às pressas da região.

IGREJA

A saída dos moradores da Piedade chegou a afetar até mesmo a Igreja Católica. A Comunidade São Vicente de Paulo, que fica no alto do morro, fechou as portas por um período e os objetos considerados sagrados foram retirados por questão de segurança. Após o fechamento, a igreja chegou a realizar alguma missas pontuais, como uma forma de pedir paz à comunidade.

PREFEITURA E ESTADO GARANTEM APOIO AOS MORADORES

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) informou que a Polícia Militar mantém presença permanente no Morro da Piedade, com equipes da Força Tática do primeiro batalhão e com patrulhas ostensivas a pé.

“Uma base móvel comunitária está fixada 24 horas por dia na região, todos os dias da semana, conforme ordem passada pelo secretário. O local para a instalação da base fixa seguirá critérios técnicos, critérios de inteligência policial e poder de visibilidade, para que assim possa funcionar como fator inibidor de delitos e de referência para a comunidade local. A negociação para aquisição do imóvel está em andamento”, disse a Sesp, por nota.

Indagada sobre o prazo de 60 dias para a instalação da base fixa, passada pelo secretário de segurança Nilton Rodrigues no dia 14 de junho, a Sesp respondeu que a data de vencimento passada na ocasião tinha a ver com o imóvel da Prefeitura de Vitória.

“Em seguida, com a decisão do executivo municipal de não mais ceder o prédio, como havia sido combinado, o secretário informou que não teria mais prazo, porém assumiu o compromisso de manter a base móvel fixa, 24 horas, até encontrar outro imóvel para a base”.

Com relação à medida judicial, a Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo (PGE-ES) informou que não recebeu notificação oficial até o momento.

PREFEITURA

Por nota, a Prefeitura de Vitória informou que “mantém diálogo constante com a comunidade e tem investido em serviços no bairro, que conta com escola, unidade de saúde, espaço de convivência e projetos sociais”.

A PMV afirmou também que vem atuando com a Guarda Municipal, que tem dado apoio ao trabalho feito pela Polícia Militar na região para manter a segurança.

Sobre o ofício que a Defensoria afirma ter enviado ao município, a prefeitura afirmou que não recebeu o documento em nenhuma das secretarias.

ENTENDA O CONFLITO

O início

2012: A família Ferreira Dias, chefiada por João Paulo, o JP, assume o tráfico de drogas nos morros da Piedade e Fonte Grande. Com isso, expulsa os criminosos rivais e os familiares deles junto.

Retomada

2018: No começo do ano, a quadrilha se reúne e consegue uma aliança com criminosos de São Benedito e Cobi de Baixo, em Vila Velha, para tentar a retomada do local.

Covardia

25 de março: seis integrantes da quadrilha sequestram Ruan Reis, na Piedade, tentando descobrir onde está JP. Por não saber responder, Ruan é morto mais de 20 tiros. O irmão, Damião, que tentou salvá-lo, morre junto.

O revide

27 de maio: após saber que as mortes dos irmãos faziam parte dos planos de retomada do morro por parte de rivais, um dos integrantes da quadrilha Ferreira Dias, Walace de Jesus Santtana, executa Aladir de Oliveira Filho, pai de Alan Rosário de Oliveira, em frente ao Porto de Vitória.

Alvo encontrado

9 de junho: Alan Rosário de Oliveira, Gustavo e Rafael Batista Lemos, Gean Gaia e Flávio Sampaio invadem o morro da Piedade, armados, e executam Walace. A família dele tem a casa queimada.

12 de julho: JP é preso junto com a irmã, Elisângela Ferreira Dias.

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17 de julho: A DHPP prende seis integrantes da quadrilha que tentava retomar o poder na Piedade. Três ainda estão foragidos.

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