Na onda de debates propostos pós protestos que se seguiram à morte do norte-americano George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, e que tomaram as ruas no país e no mundo, e, ainda, diante do caso brasileiro da morte do jovem João Pedro, de 14 anos, no Rio de Janeiro, também em virtude da ação policial, a reportagem conversou com integrantes das polícias no Espírito Santo para entender se há racismo institucional. O assunto, ainda mais em evidência devido ao movimento "BlackOutTuesday", que tomou conta das redes sociais nessa terça-feira (02), tornou a reflexão obrigatória.
Inicialmente, na visão do 1º Tenente da Polícia Militar, Anthony Moraes Costa, não caberia opinar diretamente sobre a atuação dos policiais envolvidos nos dois casos, já que a ação policial neles se deu em contextos diferentes da realidade das polícias no Espírito Santo. No entanto, ele explica a interpretação que casos semelhantes receberiam no Estado. "Se acontecesse aqui, dentro da nossa realidade, ações semelhantes, eu poderia dizer que seria muito mais um fator relacionado à desqualificação técnica da atuação do que a um fato racista. No caso do Rio de Janeiro, existe uma realidade de enfrentamento de guerra, o que pode levar as ações policiais a um potencial ofensivo muito maior", disse.
Já para o professor universitário, mestre em segurança pública e também delegado Fábio Pedroto, há uma série de fatores que se associam nesses acontecimentos. "Segundo o IBGE, a população negra tem quase três vezes mais chances de morrer assassinada do que a população branca. Isso é preocupante. Esse padrão se repete nas prisões, em que a maioria é de não-brancos. O controle do sistema de justiça criminal parece se voltar com mais ênfase para negros e vulneráveis", afirmou.
Para o Tenente Anthony Costa, as instituições de segurança, em especial a PMES, não trazem, de forma estrutural, práticas que remetam ao racismo, e, ao contrário, na visão dele, a formação policial busca estudar temas que abordam a igualdade, o respeito às diferenças e não segregação entre indivíduos.
Segundo a autoridade militar, não se pode afirmar que uma instituição é racista ou exalta práticas racistas. "Afirmar isso é dizer que ela exalta práticas segregatórias, o que não é verdade. As forças de segurança do Espírito Santo, por exemplo, não têm nenhuma prática que remeta ao racismo. Pelo contrário, todos os indivíduos que ingressam são tratados da mesma forma, são submetidos ao mesmo treinamento, têm as mesmas condições de trabalho, salários, não há distinção. Cabe dizer que as instituições são compostas por indivíduos e não são as instituições que maculam o indivíduo, pelo contrário, o indivíduo pode macular a instituição, com práticas que ele traz consigo ao longo da sua formação e, eventualmente, pode praticar atos criminosos", definiu.
Pedroto enxerga a questão de modo diferente e diz que a sociedade como um todo é estruturalmente racista. "As polícias não estão livres disso. Quando esse fenômeno perpassa essa instituição, pode ganhar contornos mais graves. Contudo, não vejo policiais que chegam ao trabalho de manhã com a intenção manifesta de prejudicar pessoas negras. Esse fenômeno comportamental ocorre por uma construção histórica e complexa", esclareceu.
Ainda de acordo com ele, não há, no entanto, uma política institucional destinada a, intencionalmente, tratar desigualmente as pessoas pela cor da pele. "Porém, existe uma percepção incorreta de que os bairros pobres são áreas de concentração de crimes e criminosos, confirmada pelo senso comum, sendo uma sensibilidade de superfície. Dessa forma, o policiamento se dirige para esse locais vulneráveis, onde a violação de direitos por parte do poder repressivo toma contornos bem definidos", afirmou.
No tocante especificamente ao uso da força por agentes policiais, Pedroto e Costa concordam no sentido de que é necessário observar os limites impostos pela lei. Segundo o professor, o limite desta aplicação mais incisiva é a Constituição e as leis. "Não podemos relativizar direitos. O policial não pode antecipar punições, que só cabem ao Poder Judiciário. Deve se ater à técnica e à legalidade", informou.
Da mesma forma, o militar entende que as forças de segurança detêm o monopólio do uso legal da força, que não deve ser entendido como violência ou ação arbitrária, mas que deve ser compreendido como meio pelo qual o policial controla uma situação que ameaça a ordem pública.
O Tenente Anthony explica que a força deve ser usada para preservar a dignidade, a integridade e à vida de pessoas, do próprio policial ou de outros cidadãos. "A força serve para evitar o mal, de forma moderada e proporcional. Ou seja, se contra mim ou outra pessoa é utilizada uma agressão não letal, a minha resposta tem que ser equivalente. É claro que durante o processo dinâmico, pode acontecer a necessidade de aumentar-se o nível de força, porque a ação contrária aumenta. Mas a ação policial é reativa à ação ilegal", relatou.
Com relação às manifestações que vêm ocorrendo em grande intensidade pelo mundo, inclusive com excessos que culminaram com a morte de manifestantes e ou de policiais, ambos os especialistas entendem que são um exercício legítimo dos grupos, desde que respeitem os limites da lei.
Pedroto considera as manifestações como verdadeiras expressões da democracia, sendo completamente legítimas. "O que lamentamos são as questões colaterais por parte de pessoas que se infiltram para praticar furtos e depredações".
De modo semelhante, Anthony Moraes Costa afirma que que os protestos e manifestações são legítimos. "São legítimos desde que não não adotem viés político, violento, ou com intuito de desestabilizar governos ou atacar pessoas. Sou favorável às manifestações desde que atuem dentro do que é previsto na nossa legislação", expressou.
No debate sobre a atuação policial e sobre a possibilidade de tratamento dispensado ao cidadão a depender do local em que os agentes se encontram, se em bairros nobres ou na periferia, os especialistas concordam que elas deveriam se dar do mesmo modo.
Para Fábio Pedroto, apesar de que, em tese, a ação policial deveria ser igualitária para o atendimento de todas as camadas sociais, na prática são observados comportamentos diferentes. "Em todo o mundo, os padrões de policiamento são diferenciados. As violações de direitos ocorrem com muito mais frequência nos bairros periféricos, considerando a vulnerabilidade sócio-política dessas pessoas. Apesar disso, muitos policiais se solidarizam com essas questões, e temos visto esse fenômeno nas manifestações mesmo nos Estados Unidos. No Brasil e no Espírito Santo, há diversas iniciativas que aproximam esses servidores da população periférica, o que deve ser estimulado, pois reforça os laços de cidadania e respeito mútuos", afirmou.
No mesmo sentido, o Tenente da Polícia Militar esclarece que a polícia deve assumir a mesma postura em qualquer lugar. "A atuação deve ser sempre pautada na legalidade. A ação policial não pode acontecer por motivação de cor de pele ou de classe social, mas por suspeição a alguma atitude, ou através da denúncia anônima. À PM cabe o policiamento ostensivo, preventivo. Quando se depara e atende os crimes que estão em andamento ou na iminência de ocorrer, quando se depara com alguma situação da prática de crime, em qualquer bairro ou lugar, com as mesmas características, seja por denúncia ou flagrante, deve atuar dentro dos limites legais", considerou.
Segundo ele, a atuação da polícia pode ser, inclusive, solidária, como no caso de programas setoriais que são desenvolvidos pelos batalhões, de integração à comunidade. "É importante nos aproximarmos das comunidades, até para tentar, dentro das possibilidades que a polícia tem, resolver algumas questões estruturais e sociais que permeiam as unidades. Existem diversas práticas como a 'Lutando pela vida' e a 'Patrulha mirim'. Me lembro de um caso de um policial que, por iniciativa própria, dava aula de futebol para crianças, fez uma escolinha, para trazer as crianças para perto da polícia e não permitir que fossem cooptadas pelo tráfico de drogas local".
George Floyd era um homem de 46 anos, nascido em Houston, no Texas, e que havia ido morar em Minneapolis, no noroeste dos Estados Unidos. No dia 25 de maio, foi morto pela ação policial. O vídeo do incidente, que circulou por todo o mundo, mostra Floyd no chão de uma rua, algemado e sem condições de se defender, sendo pressionado pelo joelho de um dos policiais brancos que o cercava, Derek Chauvin, um agente que apresenta histórico de outras agressões, segundo informações da Associated Press.
O caso que levou à morte de George Floyd, um homem que, em virtude da pandemia, perdeu o emprego como segurança de um restaurante, acendeu um movimento de protestos que entoaram dizeres e cartazes com a frase quase reprimida da vítima: "Eu não consigo respirar". O flagrante do crime foi registrado pela moradora Darnella Frazier, que passava pelo local no momento crítico.
De acordo com informações da agência de notícias Folhapress, João Pedro Matos, era um menino de 14 anos, que foi morto no último dia 18 durante uma operação policial em São Gonçalo (região metropolitana do Rio de Janeiro). De acordo com laudo de necropsia do corpo, o menino teria sido atingido nas costas por um tiro de fuzil. A Delegacia de Homicídios da região já havia identificado que o projétil tem calibre 5,56 mm, o mesmo calibre do fuzil de um dos policiais civis que participaram da ação, em apoio à Polícia Federal. O caso chocou o país e foi notícia veiculada internacionalmente.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta