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Terror na Piedade: até a Igreja fecha as portas e sai do morro

Terror na Piedade: até a Igreja fecha as portas e sai do morro

A Comunidade São Vicente de Paula, que fica no alto do morro, fechou as portas; diácono retirou objetos sagrados

Publicado em 13 de junho de 2018 às 22:53

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Que o som das balas silencie, que o som dos sinos ressoe, assim como a nossa voz a clamar: Senhor, piedade de nós!

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O desabafo é do padre Renato Criste Covre, Pároco da Catedral de Vitória, sobre a guerra do tráfico que há meses aterroriza moradores do Morro da Piedade, no Centro da Capital, deixando um rastro de medo, tiroteios e execuções.

A saída dos moradores do Morro da Piedade, por conta da disputa pelo tráfico de drogas nos últimos meses, afetou até mesmo a Igreja Católica. A Comunidade São Vicente de Paulo, que fica no alto do morro, fechou as portas e os objetos considerados sagrados foram retirados por questão de segurança.

Diácomo Paulo Roberto deixando o Morro da Piedade. (Fernando Madeira | GZ)

> TERROR NA PIEDADE | A cobertura completa

A reportagem do Gazeta Online esteve na comunidade durante a tarde desta quarta-feira (13). Embora a movimentação de abandono de residências não fosse tão intensa como nas últimas segunda e terça-feira, foi possível flagrar algumas famílias ainda retirando os últimos pertences dos, agora, antigo lares.

Quem vive no morro afirma que cerca de 25 famílias já foram embora da Piedade, restando apenas poucas pessoas na comunidade que sempre foi tão movimentada.

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Tem apenas 10 famílias lá em cima. Está deserto. Eu moro aqui há 42 anos, desde que nasci, e nunca vi isso na minha vida, É muito triste ver o lugar onde você nasceu se acabando (choro). Me despedi de vários amigos e familiares. Minhas irmãs foram embora, mas eu não tenho condições de ir. Investi todo o meu dinheiro nessa casa. Mas antes do próximo ataque (de criminosos) eu tenho que ir

Desabafo de uma moradora que teve que abandonar a residência
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O medo da moradora tem relação com um prazo de sete dias, estipulado por criminosos, para a saída de qualquer pessoa que tenha algum parentesco com qualquer traficante da região. “Os bandidos que disputam o território com os traficantes da Piedade deram avisos aos gritos no último fim de semana avisando que era pra gente ir embora. Mesmo eu sendo honesta, tenho que temer se tiver algum familiar no crime. Eles são capazes de nos matar".

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Ameaçaram até jogar granada. Eles entram em nossas casas e fazem o que querem

Ex-moradora da Piedade
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Entre os que faziam mudança, o diácono Paulo Roberto carregava o sacrário da Comunidade São Vicente de Paulo. “Estamos levando os objetos de valor religioso porque temos medo do que pode acontecer. Por enquanto, a igreja ficará fechada”, lamentou.

Procurada, a Arquidiocese de Vitória informou que as atividades na Comunidade estão temporariamente suspensas. A Comunidade Nossa Senhora da Piedade, que também fica no morro, continua aberta.

Em um texto divulgado no site da Arquidiocese de Vitória, o padre Renato Criste, Pároco da Catedral de Vitória, relatou o impacto da violência na vida da comunidade da Piedade. “Nos últimos meses, antecedeu-se aos sons dos sinos das igrejas os sons das balas no morro da Piedade anunciado mais uma tragédia“, disse.

Eledescreveu a sensação de conviver, diariamente, com os barulhos de uma violência que parece não ter uma data para acabar. “Nos centros de nossas cidades o som dos sinos se misturam ao som das balas que aterrorizam, causam medo e matam”.

Em sua reflexão sobre os sons que ecoam o medo de toda uma comunidade, Padre Renato afirma que a violência parece não mais incomodar a sociedade, que aos poucos se acostuma com a agitação dos centros e das periferias.“O som das balas disparadas sempre comunicam uma só coisa: o medo que limita ou tira a vida. O som dos sinos, mesmo que anunciam uma morte ou uma catástrofe natural, ainda querem comunicar a vida”, escreveu.

Finalizando, o padre reforçou o que a comunidade mais precisa nesse momento de terror: piedade.

O TEXTO NA ÍNTEGRA

Padre Renato Criste Covre, Pároco da Catedral de Vitória. (Ricardo Medeiros | Arquivo | GZ)

"Nos últimos meses, no domingo de Ramos da Paixão do Senhor e no 10º do Tempo Comum, antecedeu-se aos sons dos sinos das igrejas – convidando a todos para o louvor a Deus no dia especialmente dedicado a Ele – os sons das balas no morro da Piedade anunciando mais uma tragédia no morro, misturados ao grito de desespero da mãe que vê a vida dos seus filhos jovens ceifada ou da criança apavorada.

Os sinos sempre tiveram a finalidade de evocar os sentidos humanos a elevar o coração para o alto. Nas igrejas e nos vilarejos, sempre havia um sino como “instrumento de comunicação”. O toque dos sinos servia, por exemplo, para convidar para uma reunião, ou para anunciar o falecimento de alguém, para avisar de um incêndio, para pedir socorro e alertar em situações de catástrofes naturais.

Mais especificamente, nas torres das igrejas, os sinos serviam para marcar as horas de oração. Assim, o sino pode ser entendido como símbolo de comunhão, anúncio, convocação e, principalmente, como chamado a viver o Amor de Deus. Nos centros de nossas cidades o som dos sinos se misturam ao som das balas que aterrorizam, causam medo e matam. Estas quase sufocam o embalo dos sinos sincronizados ressoando a harmonia e convidando a despertar.

A religião não é uma invenção humana, ela antecede à profissão de fé do crente e desta não depende. O ser humano é um ser religioso. Este se descobre limitado e dependente, e ao mesmo tempo num conflito com algo que o interpela e abre um espaço que parece não ter fim. O homem sempre precisou de elementos sensíveis que pudessem mediar aquilo que ainda assim não cabe dentro dos nossos conceitos e imagens.

Pensar a religião e uma experiência religiosa autênticas não só deveriam comprometer o homem a viver o seu tempo como um lugar de transformação, isto é, um “kairós” (tempo da graça de Deus), como uma resposta à aquilo que o angustia na profundeza do seu ser. A religião autêntica comporta, portanto, tanto uma dimensão ética no sentido do compromisso humano a partir da sua experiência de Deus que o interpela, como também uma dimensão terapêutica que o liberta daquilo que o oprime e fere.

A violência é um estrondo que parece não incomodar mais a todos. Aos poucos vamos nos acostumando com a agitação das periferias e dos centros de nossas cidades, com o gritos oriundos das balas disparadas. Assim como os sinos parecem ter perdido o seu lugar e a sua função, quando ainda não perturbam “a paz e sossego” de alguns habitantes, nós nos esquecemos dos sinos das igrejas.

O som das balas disparadas sempre comunicam uma só coisa: o medo que limita ou tira a vida. O som dos sinos, mesmo que anunciam uma morte ou uma catástrofe natural, ainda querem comunicar a vida. Sua função é ser um som que alerta e faz ecoar o valor da vida que deve ser valorizada, defendida e divinizada.

Penso que é tempo de prestar atenção no ressoar dos sinos, decifrar as suas notas musicais a fim de despertar o ser humano do estupor que paralisa convidando-o novamente a abrir-se a Deus e ao irmão na comunhão. O som dos sinos esquecidos das igrejas é uma mensagem urgente para os homens do nosso tempo. Querem ser um grito suave da vida que é mais forte que a morte, verdadeiros tons de esperança que anunciam dias melhores.

Contudo, como explica o apóstolo Paulo, “ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine.” (1 Coríntios 13,1). Portanto, se não houver em nós o amor verdadeiro, seríamos apenas como um sino barulhento que mais irrita os que o ouvem do que produziríamos um som melodioso e agradável. Ou a ostentação de um poder arbitrário com discursos vazios e palavras mortas sem ter na verdade um objetivo proveitoso. Que o som das balas silencie, que o som dos sinos ressoe, assim como a nossa voz a clamar: Senhor, PIEDADE de nós!"

TERROR NO MORRO VIZINHO

Famílias deixam o Morro do Moscoso, em Vitória. (Fernando Madeira)

Já no Morro do Moscoso, vizinho da Piedade, o clima não é diferente. Moradores deixam suas casas desde segunda-feira e, na tarde desta quarta-feira (12), a reportagem presenciou uma família com oito pessoas indo embora. Segundo eles, são os sextos a deixar a comunidade por medo.

LIVRE-ARBÍTRIO

A saída dos moradores acontece mesmo após o secretário de Estado da Segurança Pública (Sesp), Nylton Rodrigues, garantir, na última terça-feira, que os moradores não precisavam sair, pois a polícia iria continuar na região.

Já o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Alexandre Ramalho, disse, na segunda-feira, que a decisão de algumas famílias de saírem da Piedade por se sentirem inseguras é de “livre-arbítrio” delas. Ele afirmou que desde domingo mais de 60 PMs fazem o patrulhamento na comunidade.

> OPINIÃO DA GAZETA | Que livre-arbítrio é esse, autoridades?

BRIGA POR PODER

Quando a pergunta é quem são os criminosos que estão aterrorizando a região, os moradores se dividem. Alguns dizem que são criminosos do Bairro da Penha, também na Capital, que querem tomar a Piedade.

Mas há quem afirme que o grupo que tem colocado terror na Piedade nasceu e cresceu na região, mas foi expulso após desentendimentos com chefes do tráfico de lá. “São traficantes daqui que no passado foram expulsos. Eles chegam sabendo andar pelos becos, os nomes das pessoas, onde a gente mora...”, diz morador.

> TERROR NA PIEDADE | Conheça a família que impõe medo no morro

De acordo com informações obtidas pela reportagem, as áreas de inteligência das polícias investigam os traficantes do Bairro da Penha e do Morro de São Benedito como os responsáveis pelo terror implantado no Morro da Piedade. Por trás das ações está o tráfico destas localidades, que brigam pelo comando das bocas da Piedade.

NOTA DA PM

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A Polícia Militar informou que continua a operação de intensificação no policiamento e permanência no Morro da Piedade, assim disponibiliza todos os recursos disponíveis à comunidade, como helicóptero e patrulhamento a pé para os locais onde não é possível chegar por meio de viaturas. O patrulhamento ostensivo é estratégico, móvel, e realizado em diversos pontos do local.

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