Enquanto a Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo não recomenda o uso de medicamentos sem evidência científica em meio à pandemia de Covid-19, até mesmo aliados do governador Renato Casagrande (PSB) acenam com incentivos à utilização de remédios como cloroquina e ivermectina. Entre eles estão prefeitos e até o líder interino do governo na Assembleia Legislativa.
Em nota técnica, o Executivo estadual estabelece a não recomendação do uso como prescrição universal em pacientes graves ou leves. Conforme o governo, "a posição do Estado é construída no ambiente de debate técnico-científico, endossando a posição de sociedades médicas como a Associação Brasileira de Medicina Intensiva, a Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Brasileira de Pneumologia, Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade".
O uso de remédios não é, em tese, uma discussão política. De acordo com infectologistas (médicos especialistas em doenças infectocontagiosas, como as propagadas por vírus), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a FDA, agência americana de controle de drogas, não há comprovação de que a cloroquina, por exemplo, tenha efeitos positivos contra a Covid-19. Pior, tem, sim, efeitos colaterais indesejados.
Apesar disso, a partir de desinformação e propaganda política disseminada, principalmente, nas redes sociais, há pressão de parte da população para a distribuição de remédios como esse. E é nesse contexto que casagrandistas passaram a adotar um discurso a favor da cloroquina e da ivermectina, o que tem surtido efeito em algumas cidades. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a FDA revogou a utilização emergencial da cloroquina.
Na última semana, o prefeito de Vitória, Luciano Rezende (Cidadania), aliado de Casagrande, regulamentou o protocolo para o uso da cloroquina nos pacientes com Covid-19 na cidade. De acordo com o prefeito, mesmo que não haja evidências práticas, "resultados em vários locais do Brasil" o fizeram adotar um protocolo experimental do medicamento. "As controvérsias são normais durante um período de pandemia, mas existe também a necessidade de agirmos rápido numa emergência sanitária", afirmou.
Entre os 22 municípios que já solicitaram a cloroquina, três deles são governados por correligionários de Casagrande. Os prefeitos de Cachoeiro de Itapemirim, Victor Coelho (PSB); de Santa Leopoldina, Vavá Coutinho (PSB); e de Santa Maria de Jetibá, Hilário Roepke (PSB); fizeram o pedido e foram às redes sociais para anunciar a chegada do medicamento. Médicos criticam a medida.
Outro aliado do governador, o senador Marcos do Val (Cidadania) também levantou a bandeira para a prescrição da cloroquina nos estágios iniciais da Covid-19. Na última semana, ele realizou uma live em sua página no Facebook com médicos que defendem o tratamento. O senador, que informou ter contraído o coronavírus em maio, contou ter usado a hidroxicloroquina e a azitromicina para se curar.
"Depois que fui contaminado, não tenho dúvida da eficácia do medicamento. É uma tristeza ver pessoas politizando isso, ver colegas de vocês, médicos, questionando. Não há espaço e tempo para qualquer certeza, estamos em uma guerra e nela temos que usar as armas disponíveis", disse, durante a videoconferência.
Do Val fez uma indicação e o governo federal destinou ao Fundo Estadual de Saúde R$ 10,8 milhões para a compra de 200 mil kits com hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina nas próximas semanas. Além disso, também há a destinação de R$ 1 milhão para o Centro de Pesquisa da Ufes para pesquisas com o medicamento. O recurso é parte da transferência feita aos Estados para enfrentamento da Covid-19.
De acordo com o gabinete do senador, parte desse valor é proveniente uma verba de R$ 54 milhões destinada pelo governo federal ao Estado para o combate ao coronavírus. A outra parte é de uma emenda da bancada federal capixaba, em que cada parlamentar pôde indicar o destino do dinheiro para o governo estadual.
O fato de o tratamento com cloroquina não ser política de saúde adotada pelo governo não significa que a ideia seja acompanhada por todos os gestores estaduais. Em junho, o subsecretário da Casa Civil Marcos Marinho Delmaestro e a mulher dele tiveram Covid-19. Nas redes sociais, ele exibiu uma foto com as caixas de hidroxicloroquina e azitromicina e foi questionado por seguidores sobre o uso dos medicamentos.
De acordo com a assessoria de imprensa da Casa Civil, o subsecretário se tratou em casa e fez o uso da cloroquina por recomendação médica. A reportagem tentou falar com ele sobre a divulgação do uso do remédio, mas não obteve retorno.
Secretário estadual de Agricultura e vice-presidente do PSB, Paulo Foletto também é favorável ao medicamento. Ele, que é médico com especialidade em cirurgia geral, diz acreditar que, apesar de não ter comprovação, "há relatos que indicam eficácia do remédio".
"Essa é a minha opinião pessoal. Qualquer remédio tomado em excesso e sem cuidado pode causar problemas e ter efeito colateral. Mas se há prescrição, eu sou favorável que usem. Agora, entendo o governador está sendo coerente, prestigiando o secretário Nésio, mostrando que há um alinhamento com ele", disse.
Líder interino de governo na Assembleia Legislativa, o deputado estadual Dary Pagung (PSB) é um dos que também defendem o uso, quando houver prescrição médica. "Politizaram muito essa questão, mas minha posição é de que quem tem que decidir é o médico. Quanto a essa divergência entre prefeitos e o governador, acredito que seja boa, desde que haja respeito e responsabilidade", pontuou.
Nesta sexta-feira (3), o subsecretário de Vigilância em Saúde, Luiz Carlos Reblin, destacou que a cloroquina traz uma "falsa sensação de segurança". "Isso é tão grave quanto os efeitos colaterais. Eu utilizo determinado produto, acredito que ele está me protegendo, e, na verdade, ele não me protege. Eu me exponho ao risco, e aumento o risco de adoecer pela Covid", afirmou.
O secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, disse que os municípios que quiserem adotar o remédio "assim o podem fazer".
A Organização Mundial de Saúde (OMS) realizou estudos para testar os efeitos de medicações para a Covid-19. A hidroxicloroquina, contudo, não apresentou resultados positivos contra a enfermidade. Cinco sociedades médicas do Espírito Santo também alertaram sobre o uso do remédio, que pode causar náuseas, diarreia, vômito e, em cardiopatas, risco de alterações cardíacas.
Nesta última terça-feira (30), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu um novo informe com esclarecimentos sobre os diferentes tratamentos farmacológicos já avaliados até agora, destacando que muitas divulgações sobre eles ainda não têm evidência científica.
Sobre a cloroquina, a nota diz que o uso no tratamento da Covid-19 nos primeiros dias de doença, em casos leves e moderados, está sendo avaliado e aguardam-se os resultados, e recomendou que o medicamento não seja usado, devido à falta de benefício comprovado e ao potencial de toxicidade.
Quanto aos antiparasitários, como a ivermectina, avalia que parecem ter ação contra a Covid-19 no laboratório, porém ainda não há comprovação de eficácia em seres humanos. A nota cita ainda os corticoides, antivirais, anticoagulantes, imunomodulador, plasma convalescente e suplementos alimentares.
Ciente das divergências, a direção do PSB quer evitar transformar o uso do medicamento em um debate político acalorado. O presidente do partido, Alberto Gavini, pontua que o tema deve ser debatido no campo médico e não entre políticos. Mesmo assim, o assunto acaba sendo abordado em videoconferências entre dirigentes partidários nos municípios.
"O que temos pontuado com eles nessas conferências é ter foco no que o governador tem recomendado. Nosso objetivo é salvar vidas e seguir o que é orientado pelas autoridades médicas. Partido não tem posição médica, agora o mundo é da pluralidade, as pessoas podem ter opiniões diferentes", afirmou.
Para o cientista político e médico Fernando Pignaton, o discurso ideológico em torno da cloroquina pode pressionar prefeitos a liberar a medicação, mesmo que ainda não haja comprovação técnica. Ele explica que estar em uma pandemia, onde já há uma tendência para que as pessoas fiquem assustadas, ter divergência no combate a uma doença gera maior dificuldade de se governar.
"Há uma pressão tanto nos prefeitos quanto nos médicos para que eles liberem o medicamento. Mesmo que não haja comprovação, parte da população está recebendo informações, algumas não fundamentadas, de que a cloroquina vai curá-las. Não foi algo criado aqui no Estado, mas é uma dissonância alimentada pelo próprio presidente. Isso torna a pandemia ingovernável. O ideal era um comando único, como, de certa maneira, temos visto na maioria dos países", analisou.
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