Em mais um capítulo do que já foi apelidado de presidencialismo de confrontação, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) partiu para o ataque contra governadores que adotaram medidas para conter a propagação do novo coronavírus. Apontou para os efeitos colaterais na economia.
Os governadores, por sua vez, reagiram simplesmente ignorando as recomendações na área de saúde pública ditadas pelo presidente. Orientações seguidas pelos Estados, diga-se de passagem, contratiram a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Mais que isso, 26 chefes de Executivos estaduais realizaram uma reunião virtual nesta quarta-feira (25) para tratar da pandemia sem a participação de Bolsonaro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), marcou presença.
Mais cedo, em outro bate-papo remoto, desta vez apenas com governadores do Sudeste, o coronavírus ficou em segundo plano porque Bolsonaro travou um bate-boca com o governador de São Paulo, João Doria, apontando possíveis interesses eleitorais dele.
Dentro do governo tem bate-cabeça: Bolsonaro diz que não é para as pessoas ficarem em casa, apenas os idosos e chamou a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus e que já matou mais de 15 mil pessoas no mundo em poucos meses, de "gripezinha".
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que é médico, sempre tratou o assunto de forma séria, mas já flexibilizou o discurso para se adaptar ao presidente e até criticou quarentenas impostas por governadores.
Se para conter o coronavírus o confinamento parece ser polêmico, ao menos no governo Bolsonaro, o isolamento político do presidente é um fato.
"Na dimensão política é possível. Os governadores sinalizam para o presidente que ele está isolado. Tecnicamente falando, alguns estados têm condições de manter o sistema de saúde de forma razoável, outros não. São Paulo tem bala na agulha, outros têm menos. O Rio depende muito mais do governo federal do que São Paulo", destaca o cientista político Milton Lahuerta, da Unesp.
"Não tenho conhecimento desde 1989 de um momento em que praticamente todos os governadores tenham decidido atuar em conjunto isolando o presidente da República", salienta Rodrigo Prando, da Mackenzie, também cientista político. "Quando o poder não é exercido, ele não fica órfão", complementa.
O presidente perdeu o apoio até de Ronaldo Caiado (DEM), governador de Goiás e que era seu aliado de primeira hora. Caiado é médico e não concordou com a análise da "gripezinha" feita por Bolsonaro.
Há quem imagine que o presidente fale "besteiras", como alegar que tem um histórico atlético e, por isso, passaria incólume ao novo coronavírus, como sintoma de puro despreparo. Outros veem uma estratégia.
Bolsonaro poderia estar testando as instituições para por em prática uma ruptura democrática. Poderia estar apenas buscando a quem culpar por uma crise econômica que já é internacional e certamente atingirá o Brasil ou poderia estar jogando para a militância virtual, a quem sempre pretendeu agradar em detrimento do restante da população.
Dentre essas hipóteses, a da ruptura democrática é a menos plausível, de acordo com os especialistas ouvidos por A Gazeta. E ninguém acha que o presidente tem alguma possibilidade de sair maior, politicamente, desse imbróglio, ainda que a catástrofe na saúde pública seja menor do que a verificada em países como Itália e Espanha.
"De qualquer jeito encerra o episódio diminuído. Pode ter poucas mortes (em relação aos países europeus) e a economia paralisar e Bolsonaro apontar o dedo e falar 'tá vendo?'. Mas os governadores podem dizer que houve menos mortes porque não seguiram a orientação dele. A grande questão é que nenhum político ou juiz tem o direito de escolher quem vai morrer. Quando uma empresa decreta falência o dono da empresa pode, em outro momento, abrir uma nova empresa. Se uma pessoa entra em falência múltipla dos órgãos ela morre e acabou", afirma Prando.
"Uma coisa é falar como deputado, como governador e outra como presidente. Ficou claro para vários setores que ele intencionalmente foi contra recomendações da OMS. Ele arriscou demais. A palavra dele foi muito pesada. Mesmo que a catástrofe seja a metade do que o setor médico está prevendo, vai ser negativo o resultado para ele", diz o professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano.
"Entre os governadores há o Wilson Witzel , do Rio, o João Doria, de São Paulo, o Flavio Dino, do Maranhão, notórios presidenciáveis. Não apenas porque querem mas porque são as poucas alternativas a Bolsonaro", avalia Romano.
"Desde o ano passado Doria e Witzel, que foram eleitos na onda bolsonarista, rapidamente se afastaram do presidente. Agora que o presidente apesenta fragilidade política, vão capitalizar. O próprio presidente ao insistir no fim do isolamento também impulsiona isso. Ele ouve no planalto que se a economia vai mal o governo dele acaba. A estratégia política nunca deve ficar acima do interesse público. Os governadores, ainda que tenham estratégias para ganhar capital político, conseguiram passar um sentimento de conservação da vida das pessoas", segue Prando.
Roberto Romano analisa que, embora um comportamento autoritário faça parte do perfil de Bolsonaro, isso não é exclusividade dele. Outros presidentes brasileiros já cederam à tentação de tentar governar sozinhos. A tentação permanente de qualquer presidente é agir como se fosse um ditador, o desejo de governar ignorando a autonomia dos Estados. Não diria que ele tenha uma estratégia para destruir o Estado brasileiro", acredita Romano.
"Ele não segue a cartilha republicana. E tem a opção preferencial pelo presidente dos Estados Unidos e não pelo modelo republicano americano. Chega ao ponto da imitação caricatural.Trump levantou essa possibilidade, de fim do isolamento, que seria posta em prática na Páscoa, e ele (Bolsonaro) precipitadamente seguiu o mestre", complementa.
"Quem tem mais a perder é o povo brasileiro", pontua Lahuerta.
Romano diz que as mudanças de discurso sobre o coronavírus entre membros do próprio governo não passam discretamente aos olhos da população, o que demonstra desorganização, no mínimo.
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