Uma semana após reunir prefeitos e vereadores na Assembleia Legislativa para pressionar o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) contra a extinção de 27 comarcas, deputados estaduais aprovaram, nesta segunda-feira (24), um projeto de decreto legislativo que suspende a decisão da Corte. Em sessão conturbada, o voto do relator deixou os outros membros da Comissão de Justiça confusos.
O texto aprovado é inconstitucional, de acordo com especialistas de Direito consultados pela reportagem. Eles apontam que a medida fere a Constituição Federal, que não prevê que o Legislativo possa anular uma decisão do Judiciário.
Esse também foi o entendimento de alguns parlamentares da Casa e do relator da proposta na Comissão de Justiça, deputado Marcelo Santos (Podemos). Apesar disso, ele votou pela constitucionalidade da matéria.
“O papel da Comissão de Justiça é fazer o controle de constitucionalidade, e se fizéssemos ao pé da letra, essa matéria não tramitaria, porque é inconstitucional”, afirmou Marcelo durante sessão. "Quantas vezes aprovamos matérias aqui para meramente chamar a atenção do Poder Executivo? Agora vamos chamar do Judiciário."
Dos 28 parlamentares que participaram da votação, 27 votaram a favor. Apenas o deputado Bruno Lamas (PSB) foi contra. Por ser o presidente da Casa, o deputado Erick Musso (Republicanos) não votou. Já Doutor Hércules (MDB) estava ausente.
Como se trata de um PDL, não é necessária a sanção do governador Renato Casagrande (PSB) para entrar em vigor. A lei passa a valer a partir da publicação.
A integração comarcas foi aprovada à unanimidade por desembargadores do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) em maio do ano passado, seguindo uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para reduzir gastos.
A medida, contudo, desagradou parte da sociedade civil, principalmente os prefeitos de 27 cidades onde os fóruns foram extintos e a Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional Espírito Santo (OAB-ES), que entrou com uma ação no CNJ pedindo que a decisão fosse suspensa.
No procedimento apresentado, a OAB alegou que a sessão que decidiu pela integração de comarcas na Corte ocorreu de forma secreta, sem divulgação nas redes sociais, como costuma ser feito. A Ordem também questionou a legalidade dos estudos apresentados pelo Judiciário capixaba para integrar os fóruns.
O pedido foi acatado pela conselheira Ivana Farina e, posteriormente, confirmado pelo plenário do CNJ. Desde junho, a integração de comarcas está suspensa por meio de uma medida liminar (provisória).
O julgamento do mérito da matéria, ou seja, o conteúdo, teve início no dia 4 de maio, mas foi suspenso após pedido de vista — mais prazo para analisar o assunto — de três conselheiros. Até o momento, há um voto favorável à liberação da medida do tribunal, que foi proferido também pela relatora Ivana Farina. A próxima sessão está marcada para o dia 1º de junho.
A integração de comarcas só pode ser adotada pelo Tribunal de Justiça graças à Assembleia Legislativa que, em agosto de 2014, aprovou um projeto de lei complementar apresentado pelo então presidente do Tribunal de Justiça, o desembargador Sergio Bizzotto, para reestruturar o Poder Judiciário.
O projeto previa a possibilidade de unificação de duas ou mais comarcas, para atender “aos objetivos de otimização dos gastos, aprimoramento da gestão e incremento de produtividade de juízes”.
Na época, a Assembleia era presidida pelo deputado Theodorico Ferraço (DEM), autor do Projeto de Decreto de Lei 16/2021 que foi aprovado nesta segunda-feira.
A proposta de Ferraço foi protocolada no Legislativo dias depois de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) retomar o julgamento das comarcas e acompanhou uma série de manifestações de outros parlamentares, que passaram a atuar de forma mais incisiva contra a extinção de fóruns apenas neste ano.
Nos bastidores, a movimentação é vista como uma atitude política, já que interfere na vida de moradores da base eleitoral de muitos deputados, principalmente os do interior do Estado.
No texto aprovado pela Assembleia, Theodorico susta todas as resoluções do Tribunal de Justiça que determinam a integração de 27 comarcas. A medida, contudo, é avaliada como inconstitucional pelo professor e doutor em Direito e Garantias Fundamentais Calebe Salomão. De acordo com ele, o Judiciário tem autonomia para decidir sobre a organização administrativa.
"Esse projeto é inconstitucional, não há validade jurídica. A Assembleia não tem autonomia superior ao Judiciário nesse tema para proibir o Tribunal de Justiça de fazer essas modificações. A única instância que poderia resolver isso é o CNJ e, por último, o Supremo Tribunal Federal", destacou.
O pós-doutor em Direito e professor de Direito Constitucional da FDV Anderson Pedra também entende que o texto fere a Constituição Federal. Ele cita o inciso 9 do artigo 56, que prevê atuação do Legislativo sobre decisões do Executivo, mas não sobre o Judiciário. Esse mesmo dispositivo foi citado pelo deputado Marcelo Santos durante o voto na Comissão de Justiça para apontar a inconstitucionalidade na proposta.
"Hoje, o texto constitucional não permite que a Assembleia tome essa decisão. Ao meu ver, o Tribunal de Justiça pode ingressar com uma ação para sustar os efeitos desse projeto aprovado", avaliou Pedra.
O voto de Marcelo Santos durante a sessão deixou os outros membros da Comissão de Justiça confusos. O presidente da CCJ, Fabrício Gandini (Cidadania), chegou a pedir cinco minutos para verificar se o voto do parlamentar era válido, já que, apesar de dizer que o texto era inconstitucional, o deputado votou pela constitucionalidade.
A contradição também foi questionada pelo deputado estadual Vandinho Leite (PSDB). "A partir de um momento que é entregue um relatório que o teor dele é o contrário ao parecer oral, dizendo que é inconstitucional, eu fico com muitas dúvidas", manifestou.
A deputada Janete de Sá (PMN) alertou que a fala de Marcelo poderia ser usada pelo Judiciário para derrubar a proposta aprovada no parlamento. Para resolver o problema, os parlamentares sugeriram que o relatório do deputado não fosse anexado nos autos e que prevalecesse apenas o parecer oral, pela constitucionalidade.
O deputado Bruno Lamas foi o único a votar contra o texto e avisou aos colegas que a proposta seria derrubada pela Justiça. "Isso vai ser julgado como inconstitucional lá na frente e o objetivo final, que é evitar o fechamento das comarcas, não vai acontecer porque o TJ vai certamente recorrer e a inconstitucionalidade vai ser dada como clara", disse.
Sergio Majeski (PSB) também manifestou preocupação com a validade da proposta, apesar de ter votado a favor dela. "Hoje, votamos um decreto que anula o ato do Judiciário quando o próprio relator disse, várias vezes, que não há constitucionalidade. Eu espero que nós não tenhamos criado falsas expectativas de que um decreto legislativo possa revogar um ato do Judiciário."
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