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Assembleia: um projeto por semana sem validade

Assembleia: um projeto por semana sem validade

No total, foram 78 propostas inconstitucionais em 2017 e 2018

Publicado em 3 de junho de 2018 às 22:55

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(Gazeta Online)

Ao longo desta segunda metade do mandato dos deputados estaduais, quase 30% dos projetos apresentados pelos parlamentares foram redigidos, apresentados, discutidos e aprovados para, no último momento, quando estavam prestes a serem publicados, receberem veto por serem contrários à Constituição.

Ao todo, de acordo com levantamento feito por A GAZETA, em relação aos anos de 2017 e 2018 (este até maio) 277 projetos de lei ordinária foram aprovados, mas 82 foram vetados pelo governador Paulo Hartung (MDB) em seguida. Desses, quase todos, 78, foram barrados pois continham alguma inconstitucionalidade, ou seja, eram incompatíveis com a Constituição ou o ordenamento jurídico, o que representa 28,1%. Ou seja, uma média de quatro projetos irregulares foram admitidos por mês, ou um por semana.

Um projeto pode ser inconstitucional se desrespeitar algum dos requisitos obrigatórios para a sua elaboração, como a competência para disciplinar a matéria, por exemplo. Este é, inclusive, o caso mais comum entre os projetos barradas. Como a Constituição define expressamente sobre o que cada esfera da federação pode legislar, quando o Estado tenta criar normas que cabem à União, por exemplo, o projeto é inconstitucional. Isso ocorreu com 27 deles.

Foi o caso de um projeto da deputada Raquel Lessa (PROS), que seria para destinar a reserva de vagas de trabalho a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar nas empresas prestadoras de serviços ao poder público estadual. Como interfere em normas de licitações e contratos, o tema só pode ser legislado pela União e, por isso, foi vetado.

O vício mais comum nos projetos, presente em 34 deles, foi pelo deputado estar legislando em matéria administrativa do Estado. Isso ocorreu quando o deputado Bruno Lamas (PSB) propôs a instalação de bicicletários nas escolas públicas. Como é algo que geraria custos para o Estado, foi considerado que o projeto fere o princípio da separação dos Poderes. O mesmo ocorreu com um projeto do deputado Freitas (PSB), que criou o Programa Estadual de Energia Renovável.

Houve ainda 12 casos em que o tema dos projetos representaria uma invasão do que é de responsabilidade dos municípios. Por fim, cinco textos foram declarados inconstitucionais, pois afrontavam direitos fundamentais previstos na Constituição, como no caso do projeto do deputado Euclério Sampaio (PSDC), que buscava proibir exposições artísticas ou culturais “com teor pornográfico” nos espaços públicos, por ofensa à liberdade de expressão artística. Outro exemplo foi uma tentativa do deputado Marcelo Santos (PDT) para instituir um “cadastro estadual de pedófilos”.

RATIFICAÇÃO

Esses vetos podem ser derrubados pelos deputados em plenário, mas em todos os casos, sem exceção, foram mantidos, o que pode ser interpretado de forma que os parlamentares reconheceram que os textos continham problemas.

Ao todo, 22 dos 30 deputados, tanto da base como da oposição, tiveram os projetos vetados. Os campeões foram os deputados Amaro Neto (PRB), Gilsinho Lopes (PR) e Euclério Sampaio (PSDC).

Para o mestre em História Social das Relações Políticas e professor da UVV Rafael Simões, os dados refletem a pequena possibilidade de produção de leis que resta ao Legislativo Estadual, mas também uma baixa qualidade do trabalho.

“Muitos projetos são feitos apenas para agradar bases eleitorais, e o deputado apresenta sabendo que será rejeitado. Tanto é que apesar do número alto de vetos, não há uma gritaria política. Seria um motivo para estarem protestando contra o governo, mas eles, inclusive, mantêm o veto”, analisa.

Estudo mostra que 65% das leis no país são amenidades

É fato que é limitada a atuação dos deputados estaduais na produção de leis, pois a Constituição centralizou a maior parte das competências com os representantes da União, ou seja, os membros do Congresso Nacional, e também concentrou nas mãos do Poder Executivo a maior parte das decisões sobre políticas públicas e o funcionamento do Estado.

Mesmo com esta característica do processo legislativo, no geral, há a impressão de que os deputados estaduais pouco legislam, ou, quando o fazem, cumprem mal sua função legislativa, pois tratam de temas irrelevantes, como nomeações de ruas, concessões de títulos honoríficos, estabelecimento de datas comemorativas e projetos de zoneamento urbano. E isso não é um problema exclusivo do Espírito Santo.

Um estudo feito no final do ano passado pelo mestre em Economia do Setor Público pela UNB e cientista de dados Leonardo Sales, com dados de 2016, identificou que 62,9% das leis produzidas são de baixa relevância, e que poderiam ser criadas por um ato ou procedimento administrativo, sem a necessidade de apadrinhamento por um deputado.

UTILIDADE PÚBLICA

Ele levou em conta as 4.664 leis estaduais, de 25 das 27 Assembleias Legislativas, incluindo a do Espírito Santo. No país, 26,8% das leis estaduais foram para declarar entidades como de utilidade pública, 12,7% para a criação de datas comemorativas, 5% para atribuição de nomes a ruas e viadutos e 2,6% das leis para concessão de títulos a cidadãos.

Apenas 35% das leis têm algum potencial inovador no escopo jurídico do ente federativo, de acordo com o estudo. Essas são as que fazem a regulação de programas, de atividades comerciais e modificações orçamentárias ou tributárias.

“Como os deputados possuem apenas uma competência residual para legislar, pois só podem tratar dos temas que não são da União ou dos municípios, por exclusão, eles não demonstram estar preocupados em entender qual é a real necessidade dos cidadãos. Criam leis para gerar uma imagem positiva, para fazer número, mas que na prática não geram efeitos, são inócuas”, comentou Sales.

Para o professor da UVV Rafael Simões, isso demonstra o tamanho do desafio para o eleitor escolher seus representantes e acompanhá-los.

“É preciso avaliar bem para saber o que valorizar mais na atuação do seu deputado: o seu trabalho como legislador, enquanto fiscalizador, debatedor de pautas políticas mais ideológicas, sua especialização em temas específicos pertinentes às comissões ou a microexecução de pequenos benefícios localizados”, ressaltou.

Recordistas se dizem "de mãos atadas"

Deputado estadual Amaro Neto. (Tati Beling/Ales)

Autores do maior número de projetos inconstitucionais da Assembleia Legislativa, os deputados estaduais Amaro Neto (PRB) e Euclério Sampaio (PSDC) alegam que, muitas vezes, por mais que tenham boas iniciativas, o sentimento é de estar “de mãos atadas” para elaborar leis que melhorem a vida da população.

 

Amaro, que teve nove projetos barrados, argumentou que em alguns casos sua própria equipe jurídica fez o alerta sobre a inconstitucionalidade, mas ele preferiu manter o projeto tramitando para abrir uma discussão. Um exemplo foi o texto apresentado junto com Enivaldo dos Anjos (PSD) para instituir o pagamento de adicional de periculosidade para PMs, policiais civis e bombeiros, que sabidamente tinha um vício de iniciativa.

“Às vezes vale a pena trazer o tema para a discussão, pois pode ganhar repercussão e depois se tornar uma indicação ao governo, com mais força”, disse Amaro.

Segundo ele, quando há vetos, o líder do governo, Rodrigo Coelho (PDT), explica os motivos, com um parecer técnico, para verem “onde estão pecando”.

Já Euclério Sampaio, autor de sete textos inconstitucionais, acredita se tratar de perseguição política. “O Direito e as questões jurídicas não são uma ciência exata. Mas eu sofro retaliação do governo. Houve casos que eu apresentei o projeto, o governo vetou, e depois ele apresentou um texto semelhante. Não aceitam que ninguém tenha boas ideias”, declarou.

Há inconstitucionalidades gritantes

Adriano Sant’Ana Pedra - Doutor em Direito e professor da Fdv

A lei pode ser inconstitucional por um vício formal ou material. O formal é quando, durante sua elaboração, alguma formalidade é desrespeitada. O vício material diz respeito ao conteúdo. Vimos que é muito comum a tentativa de legislar sobre algo que não é de sua competência, que é um vício material. De fato, há alguns temas que a União, Estados e municípios têm a competência concorrente, então ficamos em uma zona de incerteza. Mas grande parte desses projetos tem uma inconstitucionalidade gritante, o que mostra que a análise precisa ser melhorada, que é preciso uma atenção maior por parte dos parlamentares. Eles precisam ter assessorias jurídicas qualificadas, que possam adverti-los. Além disso, a Comissão de Constituição e Justiça tem exatamente esse papel de verificar o aspecto técnico do projeto. Para ser parlamentar, não é preciso ter formação jurídica, mas é por isso que os deputados precisam ser bem assessorados, cercando-se de pessoas que dominem todas as áreas.

Produção de leis de forma obscura

José Luiz Orrico Diretor no Instituto Futura

Desde a ditadura, o Poder Legislativo estadual e o municipal perdeu muito poder. Hoje, a elaboração das leis se concentrou muito com a União, e o Poder Executivo ficou muito forte, centralizador. Deputados não conseguem criar programas, nada que gere despesas ao Estado. O tema de maior relevância que eles tratam é a votação do orçamento público e, mesmo assim, de forma superficial. O processo de produção de leis continua muito obscuro, com o colégio de líderes partidários dando as cartas, sem nenhuma transparência. Até o estabelecimento da agenda do plenário, isto é, dos projetos de lei que vão à deliberação de todos os parlamentares, acontece sem qualquer transparência, sem qualquer aviso prévio sobre os assuntos que serão votados. Mas além da produção legislativa não ser a principal atribuição das Assembleias Legislativas, a fiscalização do Executivo ainda é precária. Os parlamentares custam caro e perderam a utilidade. Com a velocidade do mundo de hoje, este modelo está ultrapassado. Os deputados têm hoje o desafio de explicar o que fazem, para que servem e por que custam tão caro à sociedade.

 

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