Assessores da Assembleia do ES atuam como advogados particulares de deputados
Servidores do Poder Legislativo estiveram ou estão à frente de processos sobre herança, contratos, aluguel e difamação de parlamentares. Deputados alegam que não há irregularidades
Publicado em 21 de maio de 2020 às 11:29
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Deputados estaduais Carlos Von, Euclério Sampaio, Fabrício Gandini, Hércules Silveira, Hudson Leal, Iriny Lopes, Marcelo Santos, Rafael Favato, Torino Marques e Vandinho Leite. (Montagem/A Gazeta ES)
Pelo menos dez assessores parlamentares e servidores da Assembleia Legislativa atuaram nos últimos anos como advogados dos deputados estaduais do Espírito Santo em processos judiciais de cunho pessoal ou em questionamentos sobre a atividade legislativa. Entre os casos, há ação de inventário e partilha de herança, de cobrança de contratos, de pedido de indenização, de contrato de locação de imóvel, de crimes contra a honra, entre outros.
Especialistas consultados pela reportagem afirmam que a prática pode configurar improbidade administrativa, pelo uso de servidores públicos para fins pessoais. Os deputados alegam ter pago eles mesmos as despesas dos advogados, e, em alguns casos, que o trabalho realizado faz parte do assessoramento parlamentar.
(Após a publicação da matéria, no dia 21 de maio, a reportagem teve acesso a mais um caso, do deputado Hércules Silveira, que foi incluído no texto).
No processo, o órgão pediu a apuração para verificar se houve a atuação indevida do agente público em seu horário de trabalho, o que configuraria a irregularidade. O Ministério Público afirmou que a investigação trata da "indevida utilização de serviços de um agente público, para fins pessoais", afirmando que não interessa se existe relação com o mandato parlamentar e que apura a "indevida atuação de um agente público em seu horário de trabalho".
Já a defesa do deputado alega que os processos têm relação com o mandato parlamentar e que o assessor está agindo de acordo com os regulamentos da Assembleia e do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A denúncia ainda não foi recebida pela Justiça.
A atuação de servidores públicos tanto efetivos ou comissionados como advogados, não é proibida pela lei, conforme analisaram especialistas, desde que essa advocacia seja remunerada e não configure nenhum tipo de troca de favores. Mas caso haja o uso do assessor para um "serviço particular", enquadra-se em uma das hipóteses dos atos que causam prejuízo ao erário, vedadas na Lei de Improbidade Administrativa.
"Se uma autoridade utiliza os servidores públicos para trabalharem para suas questões pessoais, e for em seu horário de trabalho, ou com o uso da estrutura pública, como os computadores, está se apropriando de quadros do funcionalismo para a realização de um serviço que não diz respeito ao Estado, o que é considerado uma vantagem indevida", explica o professor de Direito Administrativo e doutorando, Raphael Abad.
Além do caso envolvendo Majeski, A Gazeta identificou outras situações em que servidores da Assembleia atuaram como advogados para parlamentares. A reportagem questionou os gabinetes dos deputados estaduais sobre a atuação dos advogados. Não há registro de denúncia formuladas pelo MPES sobre os demais casos.
VEJA QUAIS FORAM OS CASOS E O QUE DIZEM OS DEPUTADOS:
Carlos Von (Avante) Há seis processos na Justiça em que o servidor Leonardo Souza Braga, que é subcoordenador do gabinete do deputado, atua como seu advogado. Leonardo trabalha no gabinete desde 2019, e as ações são de 2020. Ele é autor de ações por crime contra a honra, interpelação judicial e de notificação para explicações.
A assessoria do deputado respondeu que não vislumbra impedimentos para que o advogado Leonardo Braga atue em defesa do "cidadão" Carlos Von e receba seus honorários advocatícios de maneira independente ao trabalho na assessoria do deputado. Afirmou também que o assessor cumpre rigorosamente sua carga horária no gabinete e não trabalha em regime de dedicação exclusiva. "Informamos que, por medidas preventivas, o advogado citado deixou de representar o deputado em suas demandas privadas", completou.
Possui uma ação judicial para tratar de um imóvel, ajuizada em dezembro de 2014, na qual o advogado é Sergio de Souza Freitas, servidor que era subcoordenador do gabinete do deputado até aquele mês. E, em seguida, passou a atuar na Comissão de Finanças, que hoje é presidida por Euclério.
O deputado negou que exista irregularidade, pois o servidor cumpre rigorosamente o horário de trabalho e, durante o tempo de serviço, desempenha atividades estritamente relacionadas às suas atribuições, não havendo sequer subordinação com o parlamentar.
"Entre eles há, apenas, excelente relação e reconhecimento da competência enquanto profissional. O deputado não monitora as atividades do servidor indicado, sobretudo as realizadas em horário não coincidente com o de expediente." Afirmou ainda que os dois mantiveram uma relação estritamente profissional, privada, devidamente remunerada e sem qualquer relação com a administração pública.
Ingressou com uma ação judicial em 2019 pelo crime de difamação, movida pelo servidor Sergio Murilo França de Souza Filho, que tem o cargo de técnico júnior de seu gabinete.
A assessoria do deputado afirma que a ação trata-se de um queixa-crime de uma fake news por difamação, na tentativa de desqualificar o mandato do deputado. Diante da gravidade da situação, optou-se pelo serviço jurídico por questão de confiança. "Cabe ainda ressaltar que o servidor em questão cumpre suas atribuições de trabalho regularmente e que os serviços advocatícios foram devidamente pagos e recibados, não gerando assim irregularidades, pois não há vedação para o exercício da advocacia neste caso."
O deputado entrou com uma ação em 2016 requerendo indenização por dano moral, cujo advogado é Rafael Nunes Correa, servidor da Assembleia, e que na época trabalhava no gabinete dele.
De acordo com o deputado, o processo trata de ofensas dirigidas a ele por meio de redes sociais, e o fato gerador do dano moral sofrido foi sua atuante atividade parlamentar. Declarou ainda que não houve qualquer ilegalidade.
"Sou advogado e eu mesmo assino a maioria dos documentos jurídicos, e nesta ação específica não foi possível porque à época ainda não tinha certificado digital para dar entrada em processos eletrônicos, que é o caso desse processo. Agora já tenho e eu mesmo faço, e em questões de natureza da minha vida privada possuo um advogado particular", explicou.
É parte em uma ação de cobrança contra um banco, do ano de 2015, na qual sua advogada é Maria Cláudia Barros Pereira, que atuou como servidora no cargo de técnico sênior de gabinete naquele ano. O processo teve início em 21 de janeiro de 2015 e ela foi admitida no gabinete em 06 de fevereiro do mesmo ano.
O deputado respondeu que a ação é de cunho pessoal, e as tratativas administrativas entre o banco e a advogada se iniciaram entre 2012 e 2013, quando ele ainda não era nem candidato. "A advogada não é mais servidora, pois foi exonerada há mais de 4 anos e continua até hoje como advogada do processo, e a última petição dela nos autos foi em 13/03/2020", explicou.
Ingressou com um mandado de segurança alegando ameaça a direito parlamentar, durante a votação de uma lei, em 2019. A demanda foi ajuizada por Rogério Favoretti, servidor que exerce o cargo de coordenador geral do gabinete parlamentar da deputada.
A assessoria da deputada informou que o mandado de segurança foi subscrito por outros dois advogados, e que inclusive já foi protocolada a desistência da ação, por perda do objeto.
Questionada sobre a existência de irregularidade, por se tratar de processo contra a Fazenda Pública, avaliou que não se trata de ação contra a Assembleia Legislativa, e sim era contra um ato do presidente da Casa.
"O mandado de segurança visava corrigir um ato do presidente, considerado pela parlamentar como antijurídico, e não se configura como problema o fato do advogado do mandato ser remunerado pela Assembleia. Inclusive, a própria Assembleia, enquanto pessoa jurídica, poderia figurar no polo ativo, junto com a deputada. A ação, ao corrigir eventual ato da autoridade do presidente, preservaria neste sentido a própria instituição Assembleia Legislativa", esclareceu.
O deputado é parte em uma ação de inventário e partilha, do ano de 2012, que ainda tramita, na qual o advogado é Miguel Pedro Amm Filho, servidor efetivo da Assembleia, que trabalha na Casa desde 1995 e hoje também ocupa o cargo de coordenador especial das comissões temporárias.
Em nota, o deputado informou que o servidor não guarda qualquer tipo de vínculo com o parlamentar ou com o seu gabinete, pois o setor que o mesmo encontra-se lotado não está a ele subordinado. "Marcelo Santos destaca ainda que a relação mantida com o advogado é profissional, de caráter privado, pago com recursos privados, não tendo relação com administração pública, em especial, com a Assembleia Legislativa e sem qualquer vedação legal para tal."
O deputado responde a uma ação que discute sobre a locação de um imóvel e, nela, é representado pela advogada Mariana Gomes Aguiar, que atua na Assembleia no cargo de assessor júnior, na Direção-Geral da Casa.
O deputado informou que a escolha da advogada se deu em razão da confiança no trabalho desenvolvido, não existindo irregularidade.
Possui uma ação judicial que trata de cumprimento de contratos, ajuizada em 2019, na qual é representado pelo servidor que atua como técnico júnior de seu gabinete, Petronio Zambrotti França Rodrigues.
Segundo o deputado, o servidor já atuou como advogado dele antes do mandato, mas não atua, de fato, no processo citado, pois quem assinou a defesa e fez a audiência foi o sócio do escritório deste servidor.
"Não houve qualquer irregularidade porque é uma relação contratual particular do deputado com o escritório, e não seu assessor, e há contrato de honorários realizado."
Ingressou com ação judicial em 2019 para pedir a anulação da lei da reforma da Previdência, alegando ilegalidades na tramitação. O advogado da causa é Marcello Pinto Rodrigues, servidor que atua no cargo de coordenador-geral do gabinete do deputado.
Segundo o deputado, a atuação do assessor no processo ocorreu por considerar sua formação e por ter verificado o erro ocorrido no trâmite legislativo, que prejudicou milhares de servidores estaduais. "A função da assessoria parlamentar, entre outras, é de me assessorar legislativamente e judicialmente, contra qualquer irregularidade no exercício do mandato", afirmou o deputado.
ANÁLISE
O professor e mestre em Direito Alessandro Dantas pontua que é possível que um servidor de um órgão preste serviços de advogado para as autoridades, alegando a relação de confiança existente. "Porém, se ficar configurado que não houve pagamento sobre os serviços prestados pessoalmente ao parlamentar, e que o cargo está sendo usado indiretamente para que seu chefe obtenha outros benefícios indevidamente, poderia existir ilegalidade", afirma.
A comprovação pode ser feita com a análise do contrato de advocacia entre o contratante e o contratado, a verificação de emissão de nota fiscal e da entrada daquela receita na contabilidade.
O Estatuto da Advocacia proíbe várias categorias de servidores de atuar como advogado, como aqueles que atuam em funções de direção nos órgãos da administração pública, militares, policiais, procuradores-gerais, defensores-gerais e dirigentes de órgãos jurídicos, por exemplo. Servidores também são impedidos de exercer a advocacia contra a Fazenda Pública, ou seja, contra o Estado.
Além disso, a resolução que trata sobre os servidores da Assembleia, dispõe que eles devem cumprir jornada normal de trabalho "de oito horas diárias para o exercício de cargo em comissão ou de função gratificada, exigindo-se do ocupante dedicação integral ao serviço".
Isso demonstra, para os especialistas, que embora não haja um regime de exclusividade, o exercício de um cargo que exige dedicação integral à atividade, em tese, pode ser considerado incompatível com outra atuação, como a de advogado, que exige comparecer a audiências e elaborar documentos e teses, por exemplo.