Investigações realizadas no Espírito Santo para identificar lideranças e financiadores de atos bolsonaristas, que resultaram em protestos e bloqueios nas rodovias federais, estão marcadas por muitas contradições entre as forças da segurança responsáveis por apurar os cabeças dos protestos antidemocráticos em território capixaba, despontados após derrota do atual presidente Jair Bolsonaro nas urnas.
Produzido a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), relatório da Polícia Civil, que reúne materiais do próprio órgão e de corporações, como Polícia Federal e Polícia Militar, cita o nome de oito possíveis organizadores das manifestações, traz fotos de outras supostas lideranças não identificadas nominalmente, mas, em sua conclusão, afirma que não há elementos para apontar quem estava a frente dos eventos.
A conclusão deixou de fora mesmo pessoas identificadas como “claramente" lideranças — termo usado no documento em relatos de policiais que foram a campo. Não coloca ainda como suspeitos até pessoas vistas nos pontos de bloqueio atuando como financiadoras do movimento ou coagindo motoristas. Uma policial indicada por investigadores como parte da organização também foi excluída do texto de encerramento.
As manifestações ocorreram logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial deste ano, vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno, no dia 30 de outubro. Entre outras coisas, os manifestantes pedem "intervenção federal" e se mostram contra a não reeleição de Bolsonaro. Atualmente, no Espírito Santo, os protestos continuam em frente ao 38º Batalhão de Infantaria do Exército. Não há bloqueios nas estradas.
As apurações foram conduzidas pelas polícias Militar, Civil e Federal, a pedido também dos Ministérios Públicos Federal (MPF) e do Espírito Santo (MPES). Os relatórios por eles produzidos foram encaminhados ao ministro do STF Alexandre de Moraes e divulgados nesta quarta-feira (16), pelo Estadão.
As contradições em relação às investigações começam nos relatórios da Polícia Federal, que, mesmo trazendo o nome de possíveis organizadores dos protestos, mostrando imagens de estradas totalmente bloqueadas, em alguns casos até por barreiras com fogo, afirmam em determinados momentos que os protestos eram pacíficos. Este adjetivo, aliás, é usado até em casos onde agentes identificaram coações a caminhoneiros que não queriam aderir à paralisação.
Ao informar, por exemplo, sobre o protesto em Guarapari, agentes ressaltaram “o caráter pacífico dos movimentos” realizados no município e que “a maioria das adesões eram espontâneas”. Porém, concluíram informando que “se pôde presenciar, contudo alguns caminhoneiros que queriam prosseguir viagens”.
O trecho contradiz o parágrafo anterior do mesmo relatório, que mostra uma foto com a informação de que dois homens não identificados estavam “mais exaltados”. E ainda que “a participação deles mostrava clara liderança, quer seja pela locução ao microfone (o de camiseta branca) quer seja por ações de coação a motoristas que queriam prosseguir viagem (o de camiseta preta)”.
No local, a Polícia Federal, de acordo com o relatório, identifica Ticiani Rossi, uma professora da cidade, que disputou as eleições para deputada estadual pelo PL. O documento afirma que a ativista política mostrou “ser uma das lideranças com acesso irrestrito à barraca da coordenação do movimento onde existia um ponto de apoio”.
Também na cidade, agentes da PF afirmam que outro manifestante, Thiago Queiroz Rodrigues, “se identificou, para policiais militares, como um dos líderes” do movimento.
Outro nome que aparece no relatório, mas não está na conclusão entregue ao STF, é o de Cláudio Paiva (PRTB), que concorreu ao cargo de governador nas eleições deste ano. Presente no mesmo protesto, ele foi apontado pelo comandante do Batalhão da PM da cidade “como uma liderança”.
Apesar dessas informações estarem presentes no relatório preliminar da Polícia Civil, na conclusão do documento é dito o seguinte: “Não podemos apontar ainda se há uma liderança, destacando-se, que muitos dos presentes estão se manifestando de forma voluntária e espontânea”.
Manifestações bolsonaristas fechando estradas federais pipocaram por todo o país após o segundo turno. Diante disso, o STF determinou investigações para apurar os financiadores dos protestos. Uma das solicitações foi feita às forças policiais do Espírito Santo, pedido, inclusive, reforçado pelo MPES e MPF.
Na manifestação de Linhares, a Polícia Federal foi até o local acompanhar os eventos. Em documento entregue à PC para a produção de relatório ao STF, os agentes informaram que as ações “eram organizadas pelos comerciantes e empresários locais, com apoio de caminhoneiros”. Mas acrescenta que não foi possível “identificar com precisão uma coordenação”.
Entretanto, o relatório da PF cita que, em contato com a equipe da PRF que atuava no local, foi informado o nome de três pessoas que estariam “agitando e dando suporte à manifestação”: Wanderson de Paula Medeiros, Jeane dos Santos Castro e Flavio da Silva.
Em Viana, foram constatados veículos de apoio ao movimento, que levaram água e comida. Os nomes dos proprietários dos carros foram colocados no documento, mas no relatório da Polícia Civil não há menção a essas participações nem mesmo a citação de uma mulher, com foto no relatório da PF, apontada como desconhecida, e que informa “o horário que vai terminar a passeata, às 17h”.
O relatório da PCES informa que, apesar das logísticas de tenda, água e alimentação, tudo estaria sendo financiado pelos manifestantes. “A princípio está sendo custeada pelos próprios manifestantes, cada uma levando sua cadeira, tenda, barraca, água e alimentação, ou realizando ‘vaquinhas’ para a compra de suprimentos”, afirma o texto, ao citar, principalmente, os atos em frente ao Batalhão do Exército, em Vila Velha.
O MPES pediu que fosse instaurado inquérito policial para apurar a possível prática do crime de milícia privada, cuja pena prevista no Código Penal é de quatro a oito anos de prisão. Em um segundo momento, o órgão pediu que duas pessoas fossem intimadas a prestar depoimento: Ubirajara Nobre Carlos, vulgo Bira Carlos ou Bira Nobre, e Marcos Willian dos Santos.
Na lista de nomes de participantes do protesto, constante no relatório preliminar da Polícia Civil e encaminhado ao STF, aparece o nome apenas do Bira, participante dos atuais protestos e apontado como um dos coordenadores da greve dos caminhoneiros no Espírito Santo no governo Temer, em 2018. Ele também tentou uma cadeira na Assembleia Legislativa nas eleições deste ano pelo PL, partido de Bolsonaro.
Marcos Willian não é citado no documento nem nos relatórios da Polícia Federal.
Outro fato que chama a atenção é o nome da policial militar Suelen Feitosa, que participou ativamente da greve da Polícia Militar em 2017, foi acusada de incitar o motim, de enfrentamento ao comandante da sua unidade e chegou a ficar presa por mais de 40 dias.
No documento da Polícia Federal, foi apontado que “houve participação ativa de uma nacional de nome Suelen, que integra ou já integrou os quadros da Polícia Militar do Espírito Santo”. No entanto, o nome dela não consta no relatório da PCES encaminhado ao Supremo nem há qualquer detalhamento sobre seu perfil, diferentemente dos outros nomes citados.
Outra ausência no relatório diz respeito aos veículos identificados. Apesar de listar nove veículos que teriam dado suporte às manifestações, com os seus respectivos proprietários, o documento não acrescenta nenhum detalhe a respeito da utilização dos carros na sua conclusão.
O documento da PCES, contendo materiais coletados por outras corporações, é finalizado informando que foi constatada a participação de pessoas que foram candidatas a cargos eletivos nas diversas esferas (municipal, estadual e federal), “mas não possuímos ainda elementos suficientes para afirmar que essas pessoas são lideranças do movimento”.
Em relação aos atos realizados em frente ao 38º Batalhão de Infantaria, em Vila Velha, informa que a maioria dos manifestantes é composta por “pessoas idosas”. Não há menção a respeito da idade das pessoas identificadas nos relatórios da Polícia Federal que se manifestaram nas rodovias.
O relatório é concluído pela PCES com a informação de que a investigação está em fase embrionária. “Não consta participação de organização criminosa nos atos de manifestações ora investigados”.
O documento foi encaminhado diretamente ao STF. Não há informações de que seja o mesmo relatório entregue pela chefe do MPES, Luciana Andrade, em reunião com o ministro Alexandre de Moraes no dia 8 de novembro.
Questionados sobre as contradições no relatório e sobre o prosseguimento das investigações, a Polícia Civil informou, em nota, que as investigações e diligências estão em andamento e, para que a apuração seja preservada, nenhuma outra informação será repassada.
A Polícia Federal também afirmou que ainda há ações em andamento e que, por isso, não podem ser comentadas e que "tampouco podemos comentar relatórios/levantamentos de outras forças".
O MPES e o MPF no Espírito Santo também foram demandados para se manifestar a respeito das contradições nos relatórios e mais informações a respeito das investigações, mas não houve retorno até o fechamento deste texto.
O administrador Cláudio Paiva (PRTB), candidato derrotado na disputa ao governo do Estado, se mostrou surpreso por ter seu nome citado como uma das lideranças das manifestações que fecharam rodovias em Guarapari. Ele afirmou que participou de "encontros de pessoas da direita de Guarapari" e atribuiu sua citação ao fato de ter concorrido ao cargo de governador. "A liderança que tenho é a da minha casa. Passei na Prainha (38º BI) uma vez só, fiz um vídeo e tá no meu Instagram. Falei que tem que sair do sofá e ir para as ruas. Isso é democrático. Se for convocado pela polícia ou qualquer outra instituição, vou falar isso.
Fiz um filme de lá (Rodovia Jones dos Santos Neves) de que a população tem que se manifestar. O direito de a gente se manifestar está na Constituição e vou continuar me manifestando", afirmou.
Ao ser questionado sobre sua participação no movimento, o candidato a deputado estadual nas eleições 2022 Bira Nobre (PL) respondeu com indignação. "É brincadeira. Não acredito nisso (da apuração de participar de possível milícia privada). Eu não fui intimado, fui sim em manifestações na Prainha, fui, vou e estou lá como cidadão, até porque lá não tem líder", disse. Antes de desligar o telefone, afirmou: "Se quiser falar comigo, apareça na Prainha".
A policiar militar Suelen Feitosa foi contatada por telefone, mas não quis conceder entrevista.
Os demais nomes citados não foram localizados para comentar a menção nas investigações sobre as manifestações que fecharam rodovias no Espírito Santo após o resultado das eleições presidenciais.
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