Movimentos políticos se apropriam, tradicionalmente, de símbolos que são carregados de diferentes significados. Entre os apoiadores do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) é cada vez mais comum ver a presença, nas redes sociais e nas manifestações de rua, das bandeiras de Israel, dos Estados Unidos e do Brasil Império. Nas últimas ocasiões, se juntaram outros símbolos, que para especialistas são atrelados a movimentos de extrema-direita, como tochas, máscaras e a onda dos vídeos com copo de leite.
A interpretação do significado de tais símbolos, explica a cientista política e professora da Ufes Euzenéia Carlos do Nascimento, depende do grupo que o utiliza e também do momento político em que é utilizado. "Isso quer dizer que o significado atribuído ao uso de símbolos pode mudar", afirma. O que, então, os símbolos utilizados pelo governo e seus apoiadores significam no atual contexto?
Igor Sabino, internacionalista e doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que a presença da bandeira de Israel nas manifestações e em formato de emojis ao lado dos nomes nos perfis de bolsonaristas nas redes sociais se dá por diferentes motivos. Em primeiro lugar, o país é visto por movimentos de extrema-direita como uma espécie de nacionalismo bem-sucedido.
"Uma das característica que temos visto desse movimento nacionalista é a ideia de se criar uma coalização de governos nacionalistas, uma espécie de elite global que combata as instituições internacionais que temos hoje", aponta. Israel, para esses grupos, seria um exemplo por "não ligar para a opinião pública internacional", ao ignorar resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU).
Esse discurso pode ser percebido, de acordo com o especialista, em diferentes falas do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que critica instituições internacionais e, repetidamente, faz a ligação delas com ideologias de esquerda. Um dos principais ideólogos desse movimento nacionalista é Olavo de Carvalho, uma voz de influência entre o governo e seus apoiadores.
Já para parte do eleitorado do presidente, a bandeira tem um significado diferente. "A maioria dos evangélicos que apoia Israel é por conta de um amor sincero e a visão de um Israel imaginário", afirma. O significado de Israel, para a religião cristã, remonta os tempos bíblicos com a história do povo judeu e o nascimento e morte de Jesus.
A bandeira, portanto, para essa parcela da população tem um significado ligado à religião e ao emocional. Ao dizer que apoia e exalta Israel, o governo acena para parte significativa da população que fez diferença para o eleger, explica Sabino.
Para o professor Gabriel Schvartzman, do Centro de Estudos Judaicos da USP, a admiração de movimentos de extrema-direita por Israel é baseada em visões deturpadas do país. "Israel é um país democrático, onde as minorias são respeitadas por lei, com uma Suprema Corte forte", diz. Ao considerar o país nacionalista, então, os grupos ignoram a realidade. "São grupos que buscam uma ordem conservadora, mas admiram um país que garante, por exemplo, o aborto e o casamento homossexual por lei."
Os especialistas acreditam que o uso da bandeira é, por parte do governo, uma forma de disfarçar traços que podem ser ligados a características do fascismo. "Uma da forma de dizer que não é fascista ou nazista é demonstrar apoio à Israel", diz Sabino.
Para o cientista político e professor da UnB Luiz Felipe Miguel, a presença da bandeira de Israel e dos Estados Unidos demonstra que o nacionalismo brasileiro "é, quando muito, um nacionalismo de fachada". "É que, na linguagem deles, 'nacionalista' aparece só como uma maneira de se afirmar anticomunista. Por isso, a predileção por países com governos de extrema-direita, como EUA e Israel."
Entre as bandeiras presentes em atos a favor do presidente está a do Império - observada em manifestações desde 2017. Com cores similares às da atual bandeira brasileira, porém estampando o brasão com a coroa que simbolizava o regime monárquico, o símbolo se espalha pelos protestos na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e na Avenida Paulista, em São Paulo, principais palcos dos atos pró-governo.
Luiz Felipe Miguel acredita que a monarquia, para esses manifestantes, significa mais a nostalgia de uma sociedade "abertamente estratificada, hierárquica, patriarcal e racista" do que um modelo de governo em si.
O professor explica que, para a extrema-direita, os movimentos emancipatórios de "mulheres, população negra, comunidade LGBT" estão "destruindo as hierarquias necessárias para que a sociedade continue em ordem". Por isso, idealizam um passado que seria harmonioso, em que cada um saberia o seu lugar.
Dois símbolos que apareceram recentemente na manifestação organizada pela ativista Sara Winter, intitulada "300 do Brasil", foram as tochas e máscaras. Assim que as imagens foram publicadas, estudiosos apontaram a semelhança entre a estética escolhida pelos apoiadores de Bolsonaro e o grupo supremacista branco norte-americano Ku Klux Klan (KKK).
Igor Sabino lembra que a imagem é muito similar às cenas das manifestações ocorridas em agosto de 2017, em Charlottesville , nos Estados Unidos. Na época, um grupo de pessoas saiu às ruas, com tochas, fazendo saudações nazistas e gritando palavras de ódio a judeus, negros, homossexuais e imigrantes.
"Quando vi o vídeo da Sara, era a imagem exata de Charlotteville. Pela semelhança entre os dois episódios, acredito que foi proposital", afirma o internacionalista.
A figura de um copo de leite ao lado do nome de perfis nas redes sociais é outro elemento que começou a ser observado recentemente entre apoiadores do presidente. Integrantes do governo e o próprio mandatário apareceram também, em vídeos, com a bebida. O motivo foi cumprir o "Desafio do Leite", proposto pela Associação Brasileira de Produtores de Leite (Abraleite), como parte de uma campanha para demonstrar a importância do produto para o agronegócio nacional.
O copo de leite, porém, já foi usado com outro significado. Historicamente, grupos supremacistas brancos produziram manifestações que incluíam beber o líquido branco como sinal de superioridade da raça ariana. O motivo, que tem sido contestado por especialistas, seria que pessoas latinas e afrodescentes possuem mais histórico de intolerância a lactose do que pessoas brancas, descendentes de países escandinavos.
Para os especialistas entrevistados por A Gazeta, o caso pode se enquadrar no que é conhecido como "dogwhistle", a utilização de símbolos comuns que enviam uma mensagem para um grupo específico.
"O público em geral não entende, mas os grupos ultra-radicais decodificam essas mensagens. Isso tem se tornado cada vez mais frequente", explica Luiz Felipe Miguel, professor da UnB.
Sabino ressalta que a utilização desses símbolos pelo governo pode ser visto como uma estratégia conhecida da extrema-direita. "É uma forma de ridicularizar a imprensa. Eles utilizam símbolos que realmente são ligados a grupos racistas, mas, por serem comuns, podem possuir outras explicações. Quando a mídia divulga o significado daquilo, é ridicularizada pela maioria", explica.
Assim, diz o especialista, os símbolos, que carregam significados cheios de extremismo, começam a ser cada vez mais naturalizados pela população e as ideias vão se disseminando na sociedade. "Se tudo é extrema-direita, nada é extrema-direita", pontua.
Talvez o símbolo mais comum de ser encontrado em qualquer manifestação de direita é a bandeira do Brasil e a camisa da Seleção brasileira de futebol. Também é o mais presente nos perfis nas redes sociais, em especial no Twitter. A professora e pesquisadora da Ufes Euzenéia Carlos afirma que esses símbolos não são de uso exclusivo da direita ou da esquerda, mas podem ser apropriados por ambos os segmentos em diferentes contextos políticos.
A professora relembra que esses símbolos nacionais já foram utilizados nas manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, em 1992, nos protestos de junho de 2013 e na campanha eleitoral de 2018. Agora, podem ser vistos nos atos pró-governo de 2020.
Antes associados à ideia de combate a corrupção e, em 2013, ao pedido de maior investimento em políticas públicas, após as eleições de 2018 "o uso dos símbolos nacionais passa a servir à defesa do programa do governo eleito, preservando um significado à direita do espectro político partidário", afirma Euzenéia.
Miguel acredita que essa apropriação, que também foi usada durante a ditadura militar, está ligada a uma "diferença de fundo nos discursos da esquerda e da direita". O professor explica que a direita investe na ideia de "unidade nacional" e critica quem aponta divisões, enquanto a esquerda "tem que falar das desigualdades, das injustiças e mostrar que a nação não é una".
Por isso, diz Miguel, a esquerda "acaba por preferir as bandeiras que afirmam de que lado dessa disputa ela está, enquanto a direita que não quer se associar publicamente à minoria privilegiada, se apropria dos símbolos mais universais".
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