Um dia depois de ironizar o desaparecimento do pai do presidente da OAB, Jair Bolsonaro (PSL) disse nesta terça-feira (30) não ter documentos que descrevam como Fernando Santa Cruz desapareceu em 1974, após ser preso pelo DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar (1964-1985).
"O que eu sei é o que falei para vocês. Não tem nada escrito que foi isso, foi aquilo. Meu sentimento era esse", disse o presidente, em entrevista pela manhã.
Contestado com o fato de haver documentos públicos que mostram que o desaparecimento se deu após prisão pelo Estado, o presidente questionou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), grupo criado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 que investigou violações aos direitos humanos ocorridos durante o regime.
"Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma", afirmou. "Nós queremos desvendar crimes. A questão de 64, não existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela."
O relatório final da CNV, divulgado em 2014, concluiu que 434 pessoas foram mortas ou desapareceram vítimas de violência do Estado no período que vai de 1946 a 1988. Dentre esses, há 210 desaparecidos e 191 mortos -33 corpos foram localizados.
Na época da divulgação do texto, a ONU elogiou o trabalho e cobrou que os crimes cometidos durante a ditadura não ficassem impunes.
Nesta segunda, ao reclamar sobre a atuação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, Bolsonaro disse que poderia explicar a Felipe Santa Cruz como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar.
"Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de uma dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele."
"Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", disse o presidente.
As falas de Bolsonaro sobre o caso geraram repúdio imediato, inclusive de aliados. A declaração foi mais uma das manifestações recentes do presidente consideradas contrárias ao decoro exigido do cargo, segundo analistas.
O presidente da OAB é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, depois de ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, no Rio de Janeiro.
Fernando era estudante de direito, funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica em São Paulo e integrante da Ação Popular Marxista-Leninista. Felipe tinha dois anos quando o pai desapareceu.
No relatório da CNV, não há registro de que Fernando tenha participado da luta armada. O documento, inclusive, ressalta que Fernando à época do seu desaparecimento "tinha emprego e endereço fixos e, portanto, não estava clandestino ou foragido dos órgãos de segurança".
Em transmissão ao vivo nas redes sociais, também na segunda-feira, Bolsonaro insinuou que Fernando teria sido alvo de ataques da esquerda, e não da ditadura.
A família de Fernando Santa Cruz afirmou que deve recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal) e à PGR (Procuradoria-Geral da República) após Bolsonaro dizer que conhecia o paradeiro dele. O chefe da OAB qualificou o gesto de Bolsonaro como "crueldade e falta de empatia".
Questionado se está disposto a explicar o caso para as autoridades, Bolsonaro não respondeu e passou a relembrar do assassinato do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel (PT), em 2002. O presidente costuma recorrer ao assassinato do petista sempre que é indagado sobre questões ligadas à ditadura militar.
DOCUMENTOS
Criada em 2011 e instalada em 2012, durante o governo Dilma, a Comissão Nacional da Verdade teve por finalidade apurar graves violações contra os direitos humanos de setembro de 1946 a outubro de 1988. Ela foi concluída em dezembro de 2014.
Seus integrantes foram advogados, especialistas em direitos humanos, um ex-procurador geral da República e um ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Foram ouvidos vários militares que atuaram na repressão às organizações de esquerda durante a ditadura militar (1964-1985).
A CNV trabalhou com diversas bases documentais, mas o grosso dos papéis, agora questionados pelo presidente Bolsonaro, veio das próprias Forças Armadas.
Como no caso dos documentos questionados por Bolsonaro, setores da inteligência militar produziram informações que, a partir dos anos 1990, foram entregues ao Arquivo Nacional, um dos principais colaboradores dos trabalhos da CNV.
A CNV não se confunde com outra comissão no âmbito do governo, existente desde 1995 ao longo de todos os governos desde então, a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), formada por sete conselheiros, incluindo membros do Ministério Público e do Congresso.
Foi essa comissão, e não a CNV, que emitiu um atestado de óbito no último dia 24 que reconhece que Fernando Santa Cruz morreu em 1974 de forma "violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985".
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