Em meio à crise do coronavírus e a econômica que certamente se sucederá, outra já está presente: a crise política. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) quer transferir aos governadores a culpa pelo colapso econômico que vem a galope.
Ele minimiza os riscos à saúde pública da pandemia enquanto os governadores tentam contê-la. E alguns ganham destaque.
É difícil dizer qual será o saldo disso, vai depender da quantidade de mortes, a fidedignidade dos dados, já que provavelmente não haverá condições de testagem em massa para verificar a quantidade real de casos de Covid-19, e de qual discurso a população vai comprar.
Se os governadores contiverem a doença, serão culpados pela crise econômica devido à estratégia de manter o comércio fechado para evitar a contaminação? É nisso que Bolsonaro aposta.
"A ideia é fingir uma preocupação menor com a questão sanitária, mas deixar que seu Ministério da Saúde defenda medidas plausíveis. Além disso, permitir que governadores estaduais e prefeitos arquem com o ônus de defender as medidas mais duras de isolamento e quarentena, enquanto o presidente da República alerta para seus óbvios riscos para o crescimento econômico e o emprego", afirma o cientista político Leandro Consentino, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Assim, Bolsonaro poderia dizer "eu avisei', sobre a crise e ainda que sempre soube que não haveria muitas mortes.
"Jogar para os governadores o ônus é uma aposta arriscada. Não se sabe o tamanho da tragédia humana", pontua o também cientista político Rogério Baptistini.
"É cedo para dizer se Bolsonaro vai se sustentar ou não, se os governadores vão se beneficiar ou não", avalia.
Ele vê outro elemento da estratégia do presidente: falar para os seus, aquecer a militância, que é sensível ao discurso anti-ciência.
Ao dizer que a Covid-19 é uma "gripezinha" e contestar dados de médicos, pesquisadores e da Organização Mundial da Saúde, o presidente pode soar "radical" ou "descontrolado", mas é isso mesmo que agrada os bolsonaristas.
"Ele estava perdendo capacidade de mobilização. Recorreu ao 'gabinete do ódio' para realinhar as tropas, metaforicamente falando", diz.
Há quem não veja "tropas" como uma metáfora e sim como algo literal. Para o cientista político da Universidade Federal de Pernambuco Adriano Oliveira, Bolsonaro pode, sim, estar abrindo terreno para uma incursão antidemocrática.
"Se morrer muita gente, os governadores podem dizer que é culpa do Bolsonaro. Se morrer menos gente, que isso só ocorreu porque os governadores agiram. O que Bolsonaro quer é o caos. Ele aposta no caos econômico e na anomia social, com saques, manifestações", afirma.
"Então ele pode implementar o estado de sítio ou chamar o Exército. E as Forças Armadas decidiram se o mantêm ou se forçam a renúncia e apoiam o Mourão (vice-presidente), que também é militar."
O quadro desenhado por Oliveira ganhou impulso por uma declaração de Bolsonaro nesta sexta-feira (27). O apresentador de TV José Luiz Datena o questionou diretamente: "O senhor seria capaz de dar um golpe?". E o presidente respondeu: "Quem quer dar o golpe jamais vai falar que vai dar, tá certo?".
Isso pode, no entanto, ser apenas mais uma das declarações de pouco apreço à democracia que o presidente tem manifestado em toda a sua carreira política.
"Um golpe não defende da vontade de uma pessoa, reclamaria condições sociais e institucionais, apoio de atores políticos para sustentar esse golpe. Ele não conta com esses atores", destaca Bapstitini.
Diretor da empresa de dados AP/Exata, Sergio Denicoli diz que desde a divulgação do resultado do PIB de 2019, apelidado de "pibinho", no início de março, a narrativa contra Bolsonaro ganhou espaço no Twitter.
Com a crise do coronavírus isso foi além. Já com a resposta, os ataques de Bolsonaro à ciência e aos governadores, a militância se organizou.
Nada é ao acaso. Nesta sexta Bolsonaro declarou que não "acredita" nos dados de São Paulo sobre casos de Covid-19. Imediatamente, surgiram na rede teorias da conspiração de que médicos seriam obrigados a registrar qualquer morte como sendo decorrente do contágio pelo novo coronavírus.
Essa militância é formada por pessoas reais e outras nem tanto. São os perfis de interferência e robôs atuando em sincronia.Isso incentiva, no entanto, os seguidores de carne e osso do presidente, os mobiliza.
O cenário hoje está polarizado, como aponta Denicoli: 56% das menções a Bolsonaro são negativas no Twitter e 44% são positivas.
A ideia central é fingir uma preocupação menor com a questão sanitária, mas deixar que seu Ministério da Saúde defenda medidas plausíveis. Além disso, permitir que governadores estaduais e prefeitos municipais arquem com o ônus de defender as medidas mais duras de isolamento e quarentena, enquanto o presidente da República alerta para seus óbvios riscos para o crescimento econômico e o emprego.
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