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Câmara de Vitória quer que pais "autorizem" conteúdo escolar para "coibir pornografia"

Câmara de Vitória quer que pais "autorizem" conteúdo escolar para "coibir pornografia"

Texto idêntico foi considerado inconstitucional em Ribeirão Preto (SP). Lei federal já proíbe exibição de conteúdo pornográfico a crianças e adolescentes e não há registros de que isso ocorra em escolas de Vitória

Publicado em 18 de fevereiro de 2021 às 20:55- Atualizado há 4 anos

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Sessão na Câmara de Vitória
Câmara de Vitória: projeto foi aprovado por 8 votos a 2 e segue para a sanção ou o veto do prefeito Lorenzo Pazolini. (Gessica Amâncio/CMV)
Rafael Silva
Repórter de Política / [email protected]

Um projeto de lei aprovado pelos vereadores de Vitória na última segunda-feira (15) quer que o conteúdo escolar sobre "educação moral e religiosa" de alunos da rede municipal seja previamente autorizado pelos pais. Com o pretexto de evitar que "conteúdo pornográfico" seja ensinado em sala de aula, a proposta, de acordo com especialistas, equipara a educação sexual – o ensino da anatomia e do comportamento relacionado à reprodução humana – à pornografia. 

Sem considerar que a exibição de conteúdo erótico já é um crime previsto na legislação federal – com pena de um a cinco anos –, o projeto pode criar, na prática, uma animosidade entre professores e pais de alunos. Especialistas em Direito afirmam que o projeto é inconstitucional, já que a definição do conteúdo a ser ensinado em sala de aula não é de competência municipal, mas sim da União.

O projeto de lei intitulado "Infância sem pornografia" foi proposto pelo vereador Gilvan da Federal (Patriota) e aprovado por oito votos a dois. Em síntese, a matéria defende que a prefeitura proíba a divulgação ou o acesso de crianças e adolescentes a textos considerados pornográficos e obscenos. A proposta vai ser encaminhada ao prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos), que pode sancionar ou vetar a matéria.

O texto ainda prevê que a prefeitura não deve autorizar ou patrocinar literatura, imagens ou músicas que descrevam "atos libidinosos". O vereador ainda sugere que servidores somente possam cooperar na "formação moral" de crianças e adolescentes se o conteúdo for previamente apresentado aos responsáveis. A medida ainda visa criar meios para que qualquer pessoa possa representar contra servidores que "violarem" o que defende o projeto de lei.

De acordo com o projeto aprovado, a violação das normas acarreta multa de 5% na remuneração do servidor, além de responsabilização civil e criminal, ou multa de 15% na cota de patrocínio, para casos em que o conteúdo tenha sido exibido por organizadores de eventos ou artistas selecionados por editais da prefeitura.

O conteúdo é idêntico a um projeto de mesmo nome aprovado em 2017 na Câmara de Ribeirão Preto, em São Paulo, de autoria da vereadora Gláucia Berenice (DEM), e está sendo comparada por profissionais da Educação às ideias do movimento "Escola sem Partido".

Por lá, o prefeito, Duarte Nogueira (PSDB), vetou a proposta, mas o veto foi derrubado pela Câmara. Coube ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidir que o projeto era inconstitucional, já que "cabe apenas à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional". Outras propostas semelhantes já foram debatidas em cidades de Minas Gerais e Santa Catarina, mas em nenhum município a norma entrou em vigor.

No Legislativo de Vitória, votaram a favor os vereadores Anderson Goggi (PTB), André Brandino (PSC), Armandinho Fontoura (Podemos), Dalto Neves (PDT), Duda Brasil (PSL), Gilvan da Federal, Leandro Piquet (Republicanos) e Luiz Emanuel (Cidadania). As vereadoras Karla Coser (PT) e Camila Valadão (PSOL) foram contrárias.

INCONSTITUCIONAL, PROJETO CRIA PERSEGUIÇÃO A PROFESSORES

De acordo com o professor de Direito e advogado constitucionalista Caleb Salomão Pereira, o projeto tem vício de iniciativa, ou seja, trata de um tema que não pode ser discutido em âmbito municipal, por vereadores. Ele explica que a Constituição, ao tratar das diretrizes educacionais, estabelece um padrão, que deve ser seguido em todos os municípios. Compete ao Congresso Nacional, após audiências públicas e discussão com a comunidade acadêmica, propor mudanças sobre o conteúdo de sala de aula.

"Ao propor um projeto assim, com um título desses, esses grupos criam perseguição aos profissionais da educação, ainda mais por sugerir uma proibição a algo que nunca foi visto sendo ensinado em sala de aula. Além disso, é comprovado que as crianças abusadas sexualmente tendem a denunciar quando recebem educação sexual e conseguem diferenciar o que é um carinho de afeto e o que é uma carícia com conotação sexual. Ou seja, se o pretexto era proteger as crianças, esse tipo de medida é equivocada", afirmou.

O advogado criminalista e especialista em Direito Constitucional Flavio Fabiano destaca que a divulgação de conteúdo pornográfico a menores já tem pena prevista no Código Penal e considerada crime sexual contra vulnerável. A pena é de reclusão de um a cinco anos. Ele lembra ainda que não cabe ao município estabelecer um conceito do que é pornografia, o que também já é descrito na legislação.

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O município não pode nem estabelecer o que é pornografia, nem querer equiparar isso à educação sexual ensinada nas escolas. O que é entendido como pornografia são vídeos que contenham atos sexuais. Isso não pode ser confundido com o ato de ensinar a uma criança como é a reprodução humana ou o que são as partes de seu corpo

Flavio Fabiano
Advogado criminalista e especialista em Direito Constitucional
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"Não compete ao poder municipal, juridicamente, ficar criando meios para criminalizar os profissionais da educação", complementou o advogado.

Em 2017, o atual presidente da Câmara, Davi Esmael (PSD), também protocolou um projeto para que o programa "Escola Sem Partido" fosse colocado em prática na Capital. A proposta chegou a ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, mas não foi levada ao plenário e acabou arquivada.

PROJETO PROMOVE A INTOLERÂNCIA, DIZEM EDUCADORAS

Doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Eliza Bartolozzi aponta que, além de inconstitucional, o projeto aprovado pelos vereadores de Vitória tende a fragilizar o trabalho do educador, ao apontar, segundo ela, para uma "criminalização sem provas".

Ela destaca, ainda, que as unidades de ensino da Capital, em geral, são bem avaliadas e que os professores do ensino básico passam por processos de formação qualificada, seguindo os conceitos da Lei de Diretrizes de Base da Educação e a Base Nacional Comum Curricular, que, por lei, orientam o trabalho dos docentes.

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As consequências de uma proposta desta natureza podem, por exemplo, fomentar a intolerância, reprimir a liberdade e até mesmo provocar um aumento de problemas sociais, como a gravidez na adolescência. A censura e a repressão podem promover práticas que gostaríamos de eliminar. O avanço da ignorância pode provocar um quadro de incivilidade maior

Eliza Bartolozzi
Doutora em Educação e professora da Ufes
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A doutora em Educação Cleonara Schwartz considera o projeto "descabido" ao sugerir que conteúdos pornográficos estejam sendo levados aos alunos em sala de aula. Ela explica que a participação dos pais na educação dos filhos é importante, mas que nem sempre os responsáveis tiveram acesso ao conhecimento necessário para o desenvolvimento de uma criança ou adolescente. Para ela, exigir que o conteúdo de "educação moral e religiosa", como foi descrito no projeto, seja "aprovado" pelos pais pode ter como consequência a perpetuação de práticas de intolerância racial ou sexual.

"Neste momento de pandemia de Covid-19, já vimos que a ciência deve ser priorizada sobre o que as pessoas pensam que é o correto. A construção dos currículos nacionais passa pelos pesquisadores, que estudam a formação de uma criança ou adolescente, seguem preceitos internacionais e constroem propostas que passam por audiências em que toda a comunidade escolar é ouvida. Isso é organizado e coordenado por profissionais capacitados do Ministério da Educação. É falso sugerir e fazer um julgamento prévio que professores levam pornografia para a sala de aula", analisou.

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Um projeto como esse, ao pressupor que professores levam pornografia para a sala de aula, cria um conflito descabido entre os professores e a comunidade acadêmica, formada pelos responsáveis pelos alunos

Cleonara Schwartz
Doutora em Educação
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Gilvan da Federal: para vereador, projeto visa prevenir casos em que crianças sejam expostas a pornografia
Vereador Gilvan da Federal discursa no plenário da Câmara de Vitória. (Gessica Amâncio/CMV)

O QUE DIZ O AUTOR DO PROJETO

Questionado pela reportagem sobre a construção do projeto de lei e sobre quais casos de "pornografia" nas escolas a proposta pretende coibir, o vereador Gilvan usou como exemplo casos em que pudessem ser ensinados, a crianças de oito anos, "prática de sexo oral ou de que menino pode beijar menino e menina pode beijar menina".

Ele sustenta que a matéria tem como objetivo prevenir que a pornografia seja apresentada em sala de aula e de evitar excessos, mas não soube afirmar se já houve registros desse tipo de situação na Capital ou no Estado.

O parlamentar admite que a proposta é inspirada no projeto da deputada estadual de Santa Catarina Ana Campagnolo (PSL) e que profissionais da Educação não foram consultados. "Como representante do povo ouço pai, mãe avó, avô, ou seja, a família", justificou.

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