Um projeto de lei aprovado pelos vereadores de Vitória na última segunda-feira (15) quer que o conteúdo escolar sobre "educação moral e religiosa" de alunos da rede municipal seja previamente autorizado pelos pais. Com o pretexto de evitar que "conteúdo pornográfico" seja ensinado em sala de aula, a proposta, de acordo com especialistas, equipara a educação sexual – o ensino da anatomia e do comportamento relacionado à reprodução humana – à pornografia.
Sem considerar que a exibição de conteúdo erótico já é um crime previsto na legislação federal – com pena de um a cinco anos –, o projeto pode criar, na prática, uma animosidade entre professores e pais de alunos. Especialistas em Direito afirmam que o projeto é inconstitucional, já que a definição do conteúdo a ser ensinado em sala de aula não é de competência municipal, mas sim da União.
O projeto de lei intitulado "Infância sem pornografia" foi proposto pelo vereador Gilvan da Federal (Patriota) e aprovado por oito votos a dois. Em síntese, a matéria defende que a prefeitura proíba a divulgação ou o acesso de crianças e adolescentes a textos considerados pornográficos e obscenos. A proposta vai ser encaminhada ao prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos), que pode sancionar ou vetar a matéria.
O texto ainda prevê que a prefeitura não deve autorizar ou patrocinar literatura, imagens ou músicas que descrevam "atos libidinosos". O vereador ainda sugere que servidores somente possam cooperar na "formação moral" de crianças e adolescentes se o conteúdo for previamente apresentado aos responsáveis. A medida ainda visa criar meios para que qualquer pessoa possa representar contra servidores que "violarem" o que defende o projeto de lei.
De acordo com o projeto aprovado, a violação das normas acarreta multa de 5% na remuneração do servidor, além de responsabilização civil e criminal, ou multa de 15% na cota de patrocínio, para casos em que o conteúdo tenha sido exibido por organizadores de eventos ou artistas selecionados por editais da prefeitura.
O conteúdo é idêntico a um projeto de mesmo nome aprovado em 2017 na Câmara de Ribeirão Preto, em São Paulo, de autoria da vereadora Gláucia Berenice (DEM), e está sendo comparada por profissionais da Educação às ideias do movimento "Escola sem Partido".
Por lá, o prefeito, Duarte Nogueira (PSDB), vetou a proposta, mas o veto foi derrubado pela Câmara. Coube ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidir que o projeto era inconstitucional, já que "cabe apenas à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional". Outras propostas semelhantes já foram debatidas em cidades de Minas Gerais e Santa Catarina, mas em nenhum município a norma entrou em vigor.
No Legislativo de Vitória, votaram a favor os vereadores Anderson Goggi (PTB), André Brandino (PSC), Armandinho Fontoura (Podemos), Dalto Neves (PDT), Duda Brasil (PSL), Gilvan da Federal, Leandro Piquet (Republicanos) e Luiz Emanuel (Cidadania). As vereadoras Karla Coser (PT) e Camila Valadão (PSOL) foram contrárias.
De acordo com o professor de Direito e advogado constitucionalista Caleb Salomão Pereira, o projeto tem vício de iniciativa, ou seja, trata de um tema que não pode ser discutido em âmbito municipal, por vereadores. Ele explica que a Constituição, ao tratar das diretrizes educacionais, estabelece um padrão, que deve ser seguido em todos os municípios. Compete ao Congresso Nacional, após audiências públicas e discussão com a comunidade acadêmica, propor mudanças sobre o conteúdo de sala de aula.
"Ao propor um projeto assim, com um título desses, esses grupos criam perseguição aos profissionais da educação, ainda mais por sugerir uma proibição a algo que nunca foi visto sendo ensinado em sala de aula. Além disso, é comprovado que as crianças abusadas sexualmente tendem a denunciar quando recebem educação sexual e conseguem diferenciar o que é um carinho de afeto e o que é uma carícia com conotação sexual. Ou seja, se o pretexto era proteger as crianças, esse tipo de medida é equivocada", afirmou.
O advogado criminalista e especialista em Direito Constitucional Flavio Fabiano destaca que a divulgação de conteúdo pornográfico a menores já tem pena prevista no Código Penal e considerada crime sexual contra vulnerável. A pena é de reclusão de um a cinco anos. Ele lembra ainda que não cabe ao município estabelecer um conceito do que é pornografia, o que também já é descrito na legislação.
"Não compete ao poder municipal, juridicamente, ficar criando meios para criminalizar os profissionais da educação", complementou o advogado.
Em 2017, o atual presidente da Câmara, Davi Esmael (PSD), também protocolou um projeto para que o programa "Escola Sem Partido" fosse colocado em prática na Capital. A proposta chegou a ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, mas não foi levada ao plenário e acabou arquivada.
Doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Eliza Bartolozzi aponta que, além de inconstitucional, o projeto aprovado pelos vereadores de Vitória tende a fragilizar o trabalho do educador, ao apontar, segundo ela, para uma "criminalização sem provas".
Ela destaca, ainda, que as unidades de ensino da Capital, em geral, são bem avaliadas e que os professores do ensino básico passam por processos de formação qualificada, seguindo os conceitos da Lei de Diretrizes de Base da Educação e a Base Nacional Comum Curricular, que, por lei, orientam o trabalho dos docentes.
A doutora em Educação Cleonara Schwartz considera o projeto "descabido" ao sugerir que conteúdos pornográficos estejam sendo levados aos alunos em sala de aula. Ela explica que a participação dos pais na educação dos filhos é importante, mas que nem sempre os responsáveis tiveram acesso ao conhecimento necessário para o desenvolvimento de uma criança ou adolescente. Para ela, exigir que o conteúdo de "educação moral e religiosa", como foi descrito no projeto, seja "aprovado" pelos pais pode ter como consequência a perpetuação de práticas de intolerância racial ou sexual.
"Neste momento de pandemia de Covid-19, já vimos que a ciência deve ser priorizada sobre o que as pessoas pensam que é o correto. A construção dos currículos nacionais passa pelos pesquisadores, que estudam a formação de uma criança ou adolescente, seguem preceitos internacionais e constroem propostas que passam por audiências em que toda a comunidade escolar é ouvida. Isso é organizado e coordenado por profissionais capacitados do Ministério da Educação. É falso sugerir e fazer um julgamento prévio que professores levam pornografia para a sala de aula", analisou.
Questionado pela reportagem sobre a construção do projeto de lei e sobre quais casos de "pornografia" nas escolas a proposta pretende coibir, o vereador Gilvan usou como exemplo casos em que pudessem ser ensinados, a crianças de oito anos, "prática de sexo oral ou de que menino pode beijar menino e menina pode beijar menina".
Ele sustenta que a matéria tem como objetivo prevenir que a pornografia seja apresentada em sala de aula e de evitar excessos, mas não soube afirmar se já houve registros desse tipo de situação na Capital ou no Estado.
O parlamentar admite que a proposta é inspirada no projeto da deputada estadual de Santa Catarina Ana Campagnolo (PSL) e que profissionais da Educação não foram consultados. "Como representante do povo ouço pai, mãe avó, avô, ou seja, a família", justificou.
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