A já desgastada relação entre o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e boa parte dos governadores ganhou um novo capítulo na última segunda-feira (1º). Em carta assinada pelos chefes do Executivo de 18 Estados, os governadores acusaram o presidente de jogar para eles a culpa pelo Brasil atravessar o pior momento da pandemia de Covid-19 e afirmaram que a prioridade de Bolsonaro “parece ser criar confrontos.”
No domingo (28), o presidente publicou em sua página valores que teriam sido repassados aos Estados, insinuando que os recursos não foram bem utilizados, e os governadores rebateram, informando que a verba não tem como finalidade exclusiva o enfrentamento à Covid-19 ou recomposição de receitas estaduais, mas são recursos obrigatórios, previstos na Constituição Federal para várias áreas, e sem relação com a pandemia.
Desde o início da crise sanitária, o acirramento entre governadores e presidente tem aumentado. As trocas de farpas já tiveram como tema a necessidade de restringir ou não o comércio, aplicação obrigatória de vacinas, batalha pela “paternidade” da primeira vacina produzida no país e a redução de impostos para conter a alta no preço dos combustíveis.
A maior parte dos embates durante o último ano teve como tema central as medidas de restrição de circulação de pessoas e funcionamento do comércio nos Estados, adotadas para tentar frear, desde março de 2020, o contágio da doença no país. Enquanto Bolsonaro apostou em minimizar a doença, chamando-a de "gripezinha", chefes de Executivos estaduais e municipais reagiram com decretos para tentar segurar a população em casa. O presidente sempre trouxe em seu discurso a preocupação com a economia.
"Esse vírus trouxe certa histeria. Tem alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado, que estão tomando medidas que vão afetar e muito nossa economia", disse em entrevista à Rádio Tupi, em 17 de março de 2020. Poucos dias depois, dessa vez para a CNN, o presidente voltou a alfinetar os governadores, insinuando que a insistência dos governos estaduais no isolamento social estaria atrelado a interesses eleitorais.
Com a iniciativa de alguns Estados de fechar aeroportos e rodoviárias para não receber turistas, Bolsonaro agiu e assinou uma Medida Provisória cravando ser de competência federal o fechamento desses espaços.
No início de abril, Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais um vídeo em que um apoiador mostra a Ceasa de Minas Gerais vazia. Na gravação, o homem diz que o desabastecimento seria por conta das medidas restritivas de comércio e chega a dizer que "é culpa dos governadores." Ao publicar o vídeo, o presidente escreveu: não é um desentendimento entre o Presidente, alguns governadores e alguns prefeitos (...). São fatos e realidades que devem ser mostradas."
A Ceasa, no entanto, esclareceu que o vídeo havia sido feito em um momento de limpeza do ambiente e, portanto, o galpão vazio não estaria relacionado a desabastecimento. Bolsonaro voltou às suas redes para pedir desculpas por ter compartilhado o vídeo "sem checar" a veracidade. O pedido, entretanto, veio com outra alfinetada "aos mais interessados em poder do que na vida das pessoas, na manutenção de seus empregos e no bem-estar do país."
No dia seguinte, enquanto conversava com pastores em frente ao Palácio da Alvorada, provocou João Doria (PSDB-SP) e Carlos Moisés (PSL-SC). “Duvido que um governador desses, Doria, Moisés, vá no meio do povo. Tá com medinho de pegar o vírus?”, ironizou. Moisés, que é do partido que elegeu Bolsonaro, rebateu dizendo que não era hora para "discursos políticos".
"Estamos falando da preservação de vidas. Estamos falando de retomada de atividades com critérios técnicos e colocando a vida em primeiro lugar", afirmou, em entrevista à Folha.
No final de abril, o presidente ampliou a lista de atividades essenciais, aquelas que não poderiam ficar fechadas por decretos estaduais durante a pandemia. Salões de beleza e academias entraram na relação e pelo menos 13 governadores se posicionaram contra a medida, afirmando que não acatariam a nova regra em seus Estados. Entre eles Camilo Santana (PT), do Ceará; Rui Costa (PT), da Bahia; e Paulo Câmara (PSB), de Pernambuco, que foram às redes sociais protestar contra a medida.
Em resposta, o mandatário disse que os gestores poderiam "ajuizar ações na Justiça" e que a atitude teria aflorado "o indesejável autoritarismo" no país.
Quando o país alcançou a triste marca das 5 mil mortes, ultrapassando as estatísticas da China, Bolsonaro delegou a "responsabilidade" pelo número aos governadores. Citando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que firmou competência dos Estados e municípios para edição de medidas restritivas para o comércio, o mandatário respondeu a jornalistas em frente ao Palácio do Alvorada, no dia 29 de abril, que "a opinião" dele não importava.
"O Supremo decidiu que quem decide essas questões [de combate ao coronavírus] são governadores e prefeitos. Então, cobrem deles. A minha opinião não vale. O que vale são os decretos dos governadores e prefeitos", disse, se referindo a uma decisão do início daquele mês. Mas, ao contrário do que Bolsonaro sugeriu, mesmo que o STF tenha decidido pela autonomia de Estados e municípios na adoção de medidas de enfrentamento à Covid-19, a Corte não retirou do governo federal a competência para também atuar no controle e prevenção da doença.
"Eu, desde o começo, me preocupei com vida e com emprego. Desemprego também mata. Então, essa conta [das mortes por Covid-19] tem que ser perguntada para os governadores", completou.
Em maio, pouco antes de se reunir por videoconferência com todos os governadores, Bolsonaro disse a apoiadores que a população precisava "sentir um pouco mais na pele" quem são "essas pessoas", se referindo aos líderes estaduais.
As críticas se seguiram pelos meses seguintes. No dia 19 de junho, disse para apoiadores que se dependesse dele não teria falado para a população "parar de trabalhar." "Se dependesse de mim, mas o Supremo [Tribunal Federal, o STF] diz que são os governadores que fazem essa política, eu não teria [falado para] o pessoal parar de trabalhar", declarou.
Ao falar com apoiadores em lives e no "cercadinho" em frente ao Alvorada, o presidente fazia questão de reforçar que agiu para interferir nas decisões tomadas pelos governadores e prefeitos. No dia 23 de julho, em uma de suas lives que costuma fazer no Facebook, o presidente disse: "Eu apanhei muito esses dias aí porque meti a caneta em muita medida restritiva aí, vetei um montão de coisas". Na data, chegou a se referir aos demais gestores como "protótipos de ditadores."
Em setembro, durante uma visita ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o presidente voltou a usar a expressão para se referir aos governadores, ao relembrar que alguns deles cogitaram fechar aeroportos.
"Alguns governadores queriam proibir pousos. Alguns governadores fecharam rodovias federais, como o Pará, por exemplo, e tiraram o poder de eu resolver as questões como eu achava que devia resolver. Fica uma grande experiência, como alguns me acusam de ditador, os projetos ditadores nanicos que apareceram pelo Brasil afora, não só em áreas estaduais, mas em algumas municipais também. Fica de ensinamento dessa pandemia."
Já com as vacinas em fase avançada de desenvolvimento, o tema passou a ser debatido no Brasil depois de Bolsonaro dizer que a imunização não seria obrigatória no Brasil. O mandatário entrou em embate direto, principalmente, com o governador de São Paulo, João Doria.
"Tem um governador que está se intitulando médico do Brasil", provocou no dia 19 de outubro. Doria, que costuma rebater o presidente, agradeceu ao mandatário por relacionar seu nome com a profissão, inclusive porque, na véspera, havia sido celebrado o "Dia do Médico."
“É o que temos feito: confiar nos médicos e na ciência para todas as medidas que adotamos na proteção a vidas, e agora na vacina”. O tucano ainda aproveitou a ocasião para alfinetar o presidente afirmando que “politizar a vacina” não seria o melhor caminho.
“O que mais precisamos, nesse momento, no Brasil é de paz, união e vacinas. Com paz, entendimento, união, convergência para proteção, vamos salvar milhares de vidas”, completou.
O diálogo entre os dois governantes assumiu um tom ainda mais tenso durante a “guerra pelas vacinas”. Bolsonaro criticou diversas vezes o imunizante que seria produzida no Instituto Butatan, em São Paulo, em parceria com farmacêutica chinesa, dizendo até que causaria “morte, invalidez e anomalia” e Doria insistindo na necessidade de acelerar o processo de vacinação.
"Enquanto não estivermos com vacina, cerca de 700 brasileiros estarão perdendo a vida todos os dias. E milhares serão infectados. Temos que ter um olhar construtivo e positivo pela vacina. E considerar velocidade, resguardados aspectos da ciência para sua aprovação”, ressaltou Doria, em entrevistas.
Na contramão, Bolsonaro para deputados e ministros aliados:
A mensagem foi enviada após Bolsonaro desautorizar o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em suas redes sociais. Respondendo comentários de apoiadores, o presidente afirmou categoricamente que não compraria a vacina “chinesa”. O Ministério da Saúde já havia anunciado a aquisição.
A tensão foi aumentando e chegou ao ápice no dia em que a primeira vacina foi aplicada no Brasil, em 17 de janeiro. Com a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em um evento organizado pelo governo de São Paulo e ao lado de Doria, a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, foi vacinada com a Coronavac, produzida pelo Instituto Butatan.
Ao mesmo tempo, em Brasília, o ministro Pazuello apresentava para a imprensa um plano de imunização que teria início dois dias depois. Os discursos foram marcados por troca de farpas entre o titular da pasta e o chefe do Executivo paulista.
Pazuello falou em “jogada de marketing” e acusou o governo paulista de estar agindo “fora da lei”. Dória respondeu que o ministro deveria estar “grato à Anvisa e São Paulo” pela vacina, e não protestar. Como resposta ao movimento do tucano, Bolsonaro disse, em 18 de janeiro, que a vacina era "do Brasil".
Mesmo que um ano tenha se passado desde o início da pandemia, a preocupação da população e os posicionamentos de Bolsonaro permanecem. Vacina, auxílio emergencial e medidas restritivas para o comércio ainda são centro das notícias no país. Com um aumento de casos e mortes, governadores de alguns Estados voltaram a decretar "lockdown", para tentar evitar o colapso da rede de saúde, que já funciona em mais da metade dos Estados no limite da capacidade para a ocupação dos leitos.
O presidente permanece contra a medida. Em visita ao Nordeste, fez um “apelo” diretamente aos governadores para que não houvesse novas medidas restritivas. O Brasil batia o recorde de 220 mil mortes.
“Faço um apelo aos governadores. É minha opinião, não estou dizendo se está certa ou errada. A política de fechar tudo e ficar em casa não deu certo. O povo brasileiro é forte. O povo brasileiro não tem medo do perigo. Nós sabemos quem são os vulneráveis, os idosos e com comorbidade. O resto tem que trabalhar”, discursou, em 28 de janeiro.
As novas decisões não agradaram o mandatário, que chamou a iniciativa de “politicalha” e ameaçou os governadores dizendo que quem fechar o comércio deverá “bancar” o próprio auxílio emergencial.
A crítica foi feita durante um evento no Ceará, um dos Estados em que o governador, Camilo Santana (PT), determinou a volta de restrições de circulação. Semanas antes, no dia 12, o presidente havia dito a apoiadores que cobrassem dos governadores o auxílio.
"Nós botamos [auxílio] por cinco meses de R$ 600 e quatro de R$ 300. E quando termina, dão porrada em mim. Cobra de quem te determinou ficar em casa, fechou o comércio e acabou com seu emprego. Cobre dos governadores, os governadores podem dar auxílio para vocês, eles podem se endividar também, porque o governo [federal] está se endividando", pontuou para apoiadores.
Nem só sobre a pandemia se deram os ataques feitos pelo presidente. Já em 2021, Bolsonaro acusou os Estados de serem culpados pelo preço alto da gasolina.
Em suas redes sociais, Bolsonaro pediu que seus apoiadores abastecessem os veículos e checassem a nota fiscal, “para calcular” os impostos. Na mesma publicação, disse que os governadores jogam a “população” contra o governo federal.
Neste episódio, o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), se manifestou, lembrando que o imposto estadual não muda há 10 anos.
"Nós temos que ter clareza que em 2011 a gasolina custava R$ 2,60 e o ICMS do combustível era o mesmo. Agora, está perto de R$ 5,70 e o combustível tem o mesmo valor de ICMS", comparou o socialista.
Em seus esforços para reduzir o preço dos combustíveis e resgatar sua popularidade, Bolsonaro anunciou, entre outras medidas, que pretendia reduzir os impostos federais e estaduais sobre esses produtos. Ao passo que Casagrande defendeu um ponto de equilíbrio para que seja possível fazer uma redução da carga tributária sem piorar a situação fiscal dos Estados.
Não é a primeira vez que Bolsonaro aponta para os governadores diante de um aumento de preço dos combustíveis. Em fevereiro do ano passado, antes mesmo da decretação da pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o presidente havia “desafiado” os governadores a zerar o ICMS e, em troca, a União também faria cortes nos valores que recebe sobre os combustíveis.
“Se você abre mão disso, você vai tirar serviço da população menos assistida. Esse movimento tem que ser de responsabilidade”, rebateu o governador catarinense, na época.
O episódio mais recente de troca de provocações se deu nesta segunda (1º). Bolsonaro e seu ministro das Comunicações, Fábio Faria, foram ao twitter divulgar valores repassados pelo governo federal aos Estados. O argumento seria que os entes federados tiveram "tempo e dinheiro" suficiente para combater a pandemia, não sendo possíveis novas medidas restritivas. Os valores divulgados, no entanto, foram refutados pelos chefes de executivos estaduais, entre eles Renato Casagrande (PSB).
Na lista de Bolsonaro, o Espírito Santo aparece com mais de R$ 16 bilhões em repasse e R$ 5 bilhões em auxílio.
"Esses números não representam a realidade da ajuda que veio aos Estados e municípios. Por isso estamos tendo que explicar. Mas a gente perde tempo com esse tipo de informação equivocada, tira energia que a gente poderia estar gastando em outras atividades no enfrentamento à pandemia", ressaltou Casagrande.
Casagrande apontou que Bolsonaro listou repasses constitucionais e rotineiros como parte da ajuda para o combate à pandemia, o que não seria correto. "Há uma informação ali para bombar os números e isso precisa ser corrigido", rebateu o socialista. O valor extraordiário, repassado como socorro para a pandemia, aponta Casagrande, foi de R$ 2 bilhões - oito vezes menor que o divulgado pelo presidente.
O embate entre governadores e o presidente na intensidade do cenário atual é algo inédito na política brasileira desde a redemocratização, em 1985, e não encontra precedentes nem mesmo durante a República Velha, na Era Vargas ou mesmo na ditadura. Para especialistas, a estratégia do confronto é algo inerente à política de Bolsonaro, ou seja, é algo que ele “não sobreviveria sem” e foi o que o impulsionou até chegar à presidência da República.
O cientista político e coordenador do curso de Ciência Política da Unicap-PE, Thales Castro, explica que a relação entre presidente e governadores está prevista na Constituição, no chamado pacto federativo, que prevê a harmonia entre os Poderes, apesar do sistema de contrapesos, em que eles, embora sejam harmônicos, possam ser independentes entre si.
Ele acredita que este “modelo” de confrontamento adotado por Bolsonaro transforma a luta ou a militância, que é algo essencial da política, em finalidade principal, em vez de ter esses embates como meio para se conquistar algo.
“Bolsonaro foi eleito em 2018 pela estratégia do embate constante. Essa polarização inflamada, que ele alimenta, o beneficia. É um campo onde ele se sente confortável e domina. Esses 18 governadores estão caindo na armadilha de retórica do governo federal, estão sendo atraídos para o campo de batalha de Bolsonaro e, ao se posicionarem, entram na narrativa que ele e seus apoiadores sustentam, de que não o deixam governar e por isso o governo federal possa não produzir os resultados esperados”, afirma Thales Castro.
O sociólogo e cientista político Paulo Baía, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que o “personagem anti-sistema” é mantido por Bolsonaro desde que começou como deputado federal. No entanto, ele pontua que os governadores e demais instituições rotineiramente atacadas pelo presidente precisam se posicionar, por mais que isso gere desgaste.
“Os governadores, o Legislativo e o Judiciário precisam reafirmar sua autonomia, principalmente quando o que o presidente fala não é razoável. Esse tipo de conduta, do enfrentamento, não é sustentável a longo prazo, nem para o presidente e muito menos para o país. No entanto, Bolsonaro não parece pensar na sustentabilidade do governo, ele pensa o tempo todo no confronto, foi o que o levou a ser eleito e é o que ele mantém em sua administração. Agora, está claro que isso gera desconforto em quem se comporta de maneira democrática e atrapalha o desenvolvimento do país”, critica.
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