Os carros oficiais, os chamados veículos de representação, estão aí praticamente desde sempre transportando autoridades em compromissos de trabalho e, não raro, do trabalho para casa e de casa para o trabalho. O privilégio não é somente dos deputados da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, mas também dos desembargadores do Tribunal de Justiça (TJES), procuradores do Ministério Público Estadual (MPES), conselheiros do Tribunal de Contas do Estado (TCES) e secretários de Estado.
Para além da discussão a respeito da necessidade ou moralidade da utilização desses carros, bancados com dinheiro público, uma questão mais objetiva não pode ser deixada de lado: como ocorre a fiscalização do uso dos veículos? Via de regra, eles somente podem transportar autoridades em trajetos relativos à atividade que desempenham. Mas quem vai saber?
Uma das formas de inibir a utilização dos carros para atividades de interesse particular é a identificação com placas especiais ou adesivos. Assim, fica mais difícil passar despercebido. Quem for flagrado, pode, por exemplo, responder a uma ação por improbidade administrativa. Mas o que os próprios órgãos públicos fazem para impedir o uso indevido?
A Assembleia Legislativa do Estado tem 30 deputados. Nem todos utilizam os carros oficiais, já que alguns optaram por não fazê-lo. Mas um contrato de aluguel permite o uso de até 31 veículos (o presidente da Casa tem direito a dois, uma para o gabinete de deputado e outro para a presidência). A identificação dos veículos já virou novela. Os carros já ostentaram uma placa preta, que não é reconhecida pelos radares e dificulta a fiscalização de trânsito. As placas acabaram ficando para trás.
Depois, em 2018, após determinação do Tribunal de Contas, a Assembleia instalou um discreto adesivo preto na porta lateral dos carros, também de cor preta. Mas vários já não ostentam a identificação. A Assembleia diz que o problema foi o "desgaste natural", embora haja controvérsias quanto a essa tese, e já mandou confeccionar novos adesivos.
A Casa faz o controle do combustível utilizado nos carros, que são abastecidos com o uso de um cartão específico. Não se pode abastecer carros particulares e o dinheiro sai da cota parlamentar. Os gastos com combustível dos deputados podem ser conferidos no Portal da Transparência da Assembleia. Mas e o uso dos carros em si? Aí é por conta de cada deputado mesmo.
Um ato de 2014 da Mesa Diretora da Assembleia diz que "os veículos oficiais são de responsabilidade exclusiva dos deputados, sendo a sua utilização permitida somente em atividades de interesse público e vinculadas ao exercício do mandato".
Os parlamentares podem usar os carros oficiais até mesmo durante o recesso, quando não são realizadas sessões ou reuniões de comissões na Assembleia. E 15 deputados não devolveram os veículos no período. Um deles, Capitão Assumção (PSL), até se envolveu em um acidente no último domingo (5). A assessoria dele alega que ele estava em uma atividade relacionada ao mandato, em Ecoporanga.
O valor do contrato de aluguel dos modelos, Ford Focus, é de R$ 1,5 milhão por ano.
De acordo com a Secretaria de Estado de Gestão e Recursos Humanos (Seger), o governo do Estado utiliza 63 carros oficiais para transporte de autoridades. Destes, 15 são próprios e 48 são locados. No caso dos veículos locados, o gasto anual é de R$ 1,4 milhão.
Uma portaria de 2010 disciplina o uso dos veículos oficiais e estipula um tratamento diferente aos de representação, que são os que transportam o governador, a vice-governadora, secretários e cargos de hierarquia equivalente. Esses podem ser utilizados no trajeto casa-trabalho/trabalho-casa e ainda transitar aos sábados, domingos, feriados e fora do horário normal. Nem todos os secretários, porém, usam da regalia nessas ocasiões.
Os que transportam subsecretários são os chamados executivos, que também escapam às proibições, válidas para os veículos de serviço, utilizados por servidores estaduais.
Os veículos oficiais somente podem ser utilizados em atividades relativas ao serviço público e, no geral, são identificados com adesivos na porta lateral dianteira. Os que transportam autoridades, no entanto, podem não ter o adesivo. Todos têm que ser modelo sedan, quatro portas, ter airbag, freio ABS e outras especificações.
Para reduzir o uso de veículos oficiais por parte de servidores e economizar dinheiro, o governo ampliou o serviço TáxiGovES para o interior do Estado. É uma espécie de "Uber do Servidor", que registra, no entanto, alguns trajetos longos e com altos custos.
O Tribunal de Contas do Estado tem sete conselheiros (um cargo com prerrogativas similares às de desembargadores do Tribunal de Justiça), três conselheiros substitutos e três procuradores especiais de Contas estes são do Ministério Público de Contas. São essas autoridades que podem utilizar os carros de representação.
O modelo dos carros varia entre Vectra e Corolla. A lista pode ser consultada no Portal da Transparência o Tribunal de Contas. Todos são próprios e não alugados. Os carros de representação (destinados aos conselheiros e aos procuradores do Ministério Público de Contas) possuem placa preta. E os veículos do operacional/administrativo são adesivados.
O Ministério Público Estadual (MPES) informou que dispõe de veículos de representação para atender os gabinetes de procuradores de Justiça, sendo que um veículo é utilizado para cada grupo de dois procuradores. O procurador-geral de Justiça, os subprocuradores-gerais de Justiça (Administrativo, Judicial e Institucional), o corregedor-geral e o ouvidor utilizam um veículo cada um.
"Qualquer descumprimento dessa norma leva à instauração de processo administrativo e responsabilização", registra o MP.
Cada um dos 28 desembargadores do Tribunal de Justiça do Espírito Santo tem direito a um carro de uso exclusivo. São os chamados veículos institucionais. O Pleno do TJES tem 30 cadeiras, mas nem todas estão preenchidas. Há também os veículos de representação, utilizados pelo presidente da Corte, pelo vice-presidente e pelo corregedor. Atualmente, todos eles são de modelo Toyota Corolla, adquiridos por meio de licitação.
Os carros são identificados, de acordo com o Tribunal, pelo uso de placas pretas numeradas de forma sequencial ou placas brancas. Cada desembargador decide sobre qual modelo de placa utilizar. A fiscalização fica por conta dos próprios desembargadores . Denúncias de uso irregular podem ser feitas por meio da Ouvidoria.
Professor da Fucape e auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco, João Eudes avalia que o ideal seria que esses carros oficiais nem existissem mais. Ele conta que em Pernambuco, por exemplo, Poderes e instituições adotam outro método: em vez de fornecer os carros, indenizam as autoridades, que utilizam os próprios veículos. "A pessoa usa o próprio carro e recebe uma indenização pelo combustível e manutenção do carro fixada em portaria da entidade. Deixa de ter o carro adquirido pelo poder público e tem uma verba indenizatória."
"É um modelo paliativo. Não se justifica usar uma verba dessa para transporte da casa para o trabalho, do trabalho para casa, com motorista quando a maioria dos servidores públicos não tem esse privilégio. Isso é uma cultura do passado", complementa.
O custo não é apenas com a manutenção dos carros e com combustível. Quem tem direito a carro de representação também tem motorista à disposição.
"E isso a gente só consegue fiscalizar através do controle da sociedade. Não vai ter um fiscal in loco para ver para onde o carro foi. Poderia, com o auxílio da tecnologia, ter um chip que mostraria o trajeto, mas o que a pessoa fez lá ela diria depois, 'ah, foi uma reunião com a comunidade'. É quase impossível fazer esse tipo de controle. Mas recebemos denúncias (no Tribunal de Contas de Pernambuco). Em relação a prefeituras e Câmaras a gente recebe denúncia anônima com fotos e vídeos sobre uso indevido de carros públicos, desde ambulância até ônibus de trasporte escolar que leva o pessoal para a praia. Tem que ter identificação (nos veículos oficiais) ou não tem como a população saber", exemplifica.
Secretário-geral da ONG Transparência Capixaba, Rodrigo Rossoni avalia que, além da identificação, a tecnologia e o portal da transparência são boas ferramentas. "As empresas de transporte colocam GPS nos caminhões e sabem até a hora que o caminhoneiro parou. E tudo isso pode ser feito com informações publicadas no portal da transparência. Evitaria os abusos", afirma.
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