Alvo de um pedido de abertura de inquérito da Procuradoria-Geral da República (PGR), para apurar o crime de prevaricação, e envolvido em denúncias de irregularidades na compra de vacinas contra a Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vive o pior momento do governo desde que assumiu o mandato.
O escândalo da Covaxin, denunciado pelos irmãos Miranda à CPI da Covid na última semana, e o suposto pedido de propina para a aquisição de doses da AstraZeneca atingem o calcanhar de Aquiles de Bolsonaro, eleito com um discurso de combate à corrupção.
O tema é sensível à população e, por mais que não gere nenhuma consequência jurídica para o presidente, como uma ação penal, por exemplo, arranha a imagem do mandatário.
Para cientistas políticos consultados por A Gazeta, não é possível mensurar o impacto das acusações nas eleições do ano que vem, dada a distância do pleito. Contudo, eles apontam uma fragilização de Bolsonaro para as eleições de 2022, com perda de apoio em segmentos que até então não tinham sido afetados.
Desde a criação da CPI da Covid no Senado, possíveis erros no enfrentamento à pandemia, que incluíam propaganda de medicamentos com ineficácia comprovada e o atraso na compra de vacinas estavam no centro das investigações. Mas a CPI ganhou um novo foco após denúncias de corrupção.
A primeira delas veio com o depoimento dos irmãos Miranda, que relataram ter procurado o chefe do Executivo federal para denunciar irregularidades em contratos do Ministério da Saúde com a Covaxin. A acusação de que o presidente teria relacionado as irregularidades ao líder de governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), mas nada fez, estremeceu o Planalto.
A primeira reação foi de desqualificar a denúncia, o que não pegou bem. Em seguida, o governo mudou a estratégia, mandou abrir uma investigação na Polícia Federal e Bolsonaro afirmou que não tinha "como saber o que acontece em todos os ministérios". Dias depois, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, pediu a suspensão do contrato.
Mas uma denúncia de um esquema de cobrança de propina na pasta, feita pelo cabo da Polícia Militar Luiz Paulo Dominguetti, que intermediava vendas de vacinas da AstraZeneca, trouxe um novo desgaste para o governo. Como medida de contenção, o diretor de Logística da Saúde, apontado como autor do pedido de propina, foi exonerado.
Os dois episódios trazem um impacto diferente do que se via até então para a imagem de Bolsonaro, segundo o cientista político e professor da FGV-SP Cláudio Couto. De acordo com ele, o que antes envolvia uma postura negacionista do presidente em relação à pandemia, agora toca um tema sensível à população, e parte da narrativa que o elegeu: o combate à corrupção.
"São denúncias que solapam o que Bolsonaro tentou transformar em trunfo do governo. Desde a campanha, o presidente se colocava como o candidato anticorrupção, que era contra a velha política e que faria uma administração sem a presença de corruptos. Quando ele se coloca no centro de denúncias que envolvem propina e superfaturamento, isso gera um desgaste enorme para ele, porque vai no nervo do governo", analisa.
As acusações que recaem sobre o colo do chefe do Planalto atingem um novo segmento de eleitores do presidente, segundo a professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart. De acordo com ela, são pessoas "não tão radicais", que deram um voto contra a corrupção e que, por isso, são atingidas diretamente por denúncias que envolvem o uso de dinheiro público.
"Corrupção é uma pecha muito forte para um governo e um termo fácil de a população entender. Isso penetra em camadas da população que ainda não tinham ficado insatisfeitas com a performance do presidente. São eleitores que votaram no presidente porque o viam como a via da não corrupção", destaca.
As denúncias contra o presidente chegam no pior momento do governo, que lida com críticas referentes ao atraso da vacinação, crise hídrica e inflação. Esse conjunto de fatores tem inflado manifestações nas ruas e fortalecido articulações para pedidos de impeachment.
Na última quarta-feira (30), um "superpedido" de impeachment, listando 23 crimes cometidos por Bolsonaro, foi assinado por movimentos da sociedade civil e lideranças partidárias. O documento deve ser mais um a ficar na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), mas deixa o presidente cada vez mais desgastado.
"Esse movimento das pessoas na rua, que começa a ganhar apoio de partidos que não são apenas de centro-esquerda, aumenta o desgaste. Porque essas manifestações passam a atingir o cidadão médio, pessoas que elegeram o presidente e o apoiaram", assinala Goulart.
Os especialistas, contudo, são céticos quanto às consequências que esses movimentos podem implicar o atual mandato de Bolsonaro. Para a professora de Ciência Política da PUC-SP Rosemary Segurado, é improvável que o presidente sofra consequências na Câmara dos Deputados ou a partir do pedido de inquérito da PGR. A Procuradoria, inclusive, já fala em ausência de indícios de crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro, antes mesmo de abrir a investigação.
Segurado vê, contudo, um desgaste de imagem dificilmente reversível, que implica a perda de popularidade e pode por em risco a reeleição do chefe do Planalto no ano que vem.
"Sou cética quanto a um processo de impeachment, porque envolve um jogo político. Mas o desgaste do presidente não é reversível e, na minha opinião, tende a aumentar. Acredito que ele chega fragilizado nas eleições do ano que vem, mas é difícil mensurar esse impacto, já que estamos muito longe", destacou.
Em depoimento à CPI da Covid, o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda denunciou inconsistências no contrato que previa a compra de 200 milhões de doses da vacina indiana Covaxin por R$ 1,6 bilhão, além de pressão "anormal" para assiná-lo.
Segundo Miranda, a nota fiscal teve que ser retificada três vezes por apresentar valores errados, e previa pagamento antecipado de R$ 45 milhões para uma empresa que não era a fabricante indiana, mas uma intermediária com sede em Singapura.
Diante das irregularidades, o servidor comunicou o irmão, o deputado federal bolsonarista Luís Miranda (DEM-DF), sobre o caso. Ele contou que os dois foram pessoalmente até o presidente Jair Bolsonaro e relataram indícios de corrupção.
O presidente disse, ainda de acordo com os irmãos, saber quem poderia estar envolvido no caso e citou o nome do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Bolsonaro ainda afirmou que iria mandar a Polícia Federal investigar, mas não o fez.
O alto valor da dose da Covaxin, superior a qualquer outra negociada pelo Ministério da Saúde e as inconsistências apresentadas pelo servidor da Saúde tornaram-se alvo de investigação do MPF.
Já a possível omissão de Bolsonaro é alvo de um pedido de abertura de inquérito da PGR e é apontado como um dos 23 crimes de responsabilidade cometidos pelo chefe do Planalto e que baseia o "superpedido" de impeachment.
Nesta sexta-feira, a Procuradoria-Geral da República pediu a abertura de um inquérito no STF para investigar o presidente Jair Bolsonaro por prevaricação no caso da Covaxin. O pedido foi feito após a ministra Rosa Weber cobra uma posição da PGR sobre a notícia-crime apresentada por três senadores à Corte, entre eles Fabiano Contarato (Rede).
Cabe agora ao procurador-geral da República, Augusto Aras, analisar os indícios apontados pelos parlamentares na denúncia. Ao fim do inquérito, Aras pode oferecer denúncia contra Bolsonaro ao STF ou arquivar o pedido.
Antes mesmo de analisar o caso, a PGR já se manifestou sobre não deve haver indícios de crime de prevaricação. Mas, caso Aras opte por denunciar o presidente, ele precisa remeter o processo para análise da Câmara dos Deputados, que é quem pode autorizar o STF a julgar ou não Bolsonaro. Para que o processo seja levado adiante, seria necessária a aprovação de dois terços dos deputados, o que equivale 342 votos. Ao todo, a Câmara é composta por 513 deputados.
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