A vitória nas urnas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é para Jair Bolsonaro (PL) mais do que uma derrota política. Há também implicações jurídicas. Quando o mandato se encerrar em dezembro, ele perde o foro privilegiado concedido a presidentes da República e poderá responder a processos na Justiça comum, como no inquérito das milícias digitais, e ainda ter suspensos sigilos de até 100 anos que impôs a documentos durante o seu governo.
Caberá ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que comanda as investigações sobre uma suposta organização que atuaria contra a democracia, definir se os processos que envolvem os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral, serão mantidos na Corte ou se serão remetidos a outra instância. Em outubro, o inquérito foi prorrogado por mais 90 dias.
Outro processo que implica o atual mandatário é o que analisa uma suposta interferência do presidente na investigação contra o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro. Há ainda o caso das "rachadinhas", prática que consiste em ficar com parte da remuneração de funcionários. Embora a denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) tenha sido arquivada, ainda pode respingar em seu pai, quando deixar o Palácio do Planalto. A acusação, se for de fato formulada, seria por conduta anterior ao mandato de presidente.
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Ludgero Liberato aponta que o presidente da República tem duas garantias constitucionais. A primeira é que ele não pode responder por atos que não tenham relação com o exercício do mandato; uma eventual denúncia é adiada e só pode ser feita após o político deixar o cargo.
A segunda garantia constitucional, continua Ludgero, é a prerrogativa que um presidente possui de ser processado apenas perante o STF. A denúncia, se houver, tem que ser feita pela Procuradoria Geral da República (PGR) e a Corte avalia se aceita ou não. Antes, porém, ainda precisa ser autorizada pela Câmara dos Deputados.
O advogado lembra que esse foi o procedimento adotado quando Michel Temer (MDB) foi denunciado por corrupção no caso envolvendo a empresa JBS, mas, no fim, os parlamentares o mantiveram na Presidência. Com o fim do mandato, um ex-presidente pode ser denunciado por promotores e procuradores de primeira instância e, se for o caso, julgado na esfera comum.
Questionado sobre a manutenção dos sigilos impostos a documentos por Bolsonaro, em alguns casos de até 100 anos, Ludgero afirma que podem, sim, ser derrubados pelo presidente eleito Lula, mas depende da classificação que receberam, conforme previsto na Lei de Acesso à Informação (LAI).
Entre os sigilos de um século decretados ao longo do governo Bolsonaro estão dados da investigação do suposto esquema de rachadinha por Flávio Bolsonaro; informações do cartão de vacinação do presidente, que disse publicamente não ter recebido vacina contra a Covid-19; os encontros entre Bolsonaro e os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, suspeitos de mediar liberação de recursos do Ministério da Educação para prefeituras; os acessos de Carlos e Eduardo Bolsonaro ao Palácio do Planalto; o processo contra o ex-ministro Eduardo Pazuello por participação em ato político, o que é proibido a militares da ativa; e até as mensagens trocadas entre o Itamaraty e o irmão de Ronaldinho Gaúcho, quando o atleta foi preso no Paraguai, em 2020.
O artigo 24 da legislação prevê que a informação de órgãos e entidades públicas pode ser classificada como reservada, secreta e ultrassecreta, considerando a segurança da sociedade e do Estado. Nesses casos, o sigilo pode ser de cinco, 15 ou 25 anos, respectivamente.
"O que ocorre muitas vezes, e não quero dizer que é o caso da atual presidência, é o desvio de finalidade. Isto é, atribuir a um documento a natureza de secreto, quando não é. O presidente eleito, percebendo que isso tenha ocorrido, pode retirar o sigilo desses atos, o que não quer dizer que não possa haver discussões jurídicas", observa Ludgero.
Já no artigo 31, há uma previsão que estabelece sigilo de até 100 anos quando se tratam de informações pessoais, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem. Perguntado se, por exemplo, o cartão de vacinação de Bolsonaro seria um documento com essas características, o advogado argumenta que a expressão "intimidade" pode provocar discussões jurídicas sobre em que casos o sigilo é ou não admitido.
Ludgero faz questão de ressaltar que, mesmo diante dessas possibilidades, não se deve criar um grau de alarmismo com a situação. Ele diz que o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já foram acionados diversas vezes em casos semelhantes e garantiram o respeito ao processo. "Por mais que alguns possam ter anseio e, outros, receio, as decisões tomadas em juízo de primeiro grau podem ser revistas nas outras instâncias. Mais cedo ou mais tarde, a decisão correta será tomada."
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta