Arquivos extraídos do celular do então policial civil Hilário Frasson revelam as conversas dele com o juiz Alexandre Farina Lopes no que seriam as tratativas da suposta venda de sentença, investigada pelo Ministério Público Estadual (MPES). Em um dos diálogos, o magistrado reforça a preocupação em receber a vantagem indevida, afirmando que teria que dobrar a dose de remédio para redução de ansiedade que ele estava tomando, de tanto desespero.
A partir da quebra de sigilo do celular de Hilário, também foram encontradas outras ligações entre Hilário e terceiros, que revelam a participação de Farina em um processo julgado pelo magistrado Carlos Alexandre Gutmann.
Na sessão da última quinta-feira (15), o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) decidiu afastar dos cargos os dois juízes. O afastamento foi solicitado pelo MPES, que argumentou que os dois estavam atrapalhando as investigações, fazendo contato com testemunhas.
O caso estava sob sigilo, que foi derrubado pelo Tribunal na quinta.
A sentença, que de acordo com a investigação foi negociada em troca de vantagem indevida, foi proferida em março de 2017 por Gutmann e envolvia os interesses do empresário Eudes Cecato e a intermediação de Hilário e de Farina, segundo o MPES.
Hilário acabou preso, em setembro daquele ano, acusado de mandar matar a ex-esposa, Milena Gottardi. Apesar de o assassinato não ter ligação com a sentença, foi por meio da investigação do homicídio da médica que o MPES tomou conhecimento do caso e chegou até Farina, que, segundo Hilário, "era um juiz amigo".
"Os diálogos e registros de chamadas telefônicas demonstram que o magistrado Alexandre Farina Lopes negociou o recebimento de vantagem indevida, intermediada por Hilário Antônio Fiorot Frasson e Davi Ferreira da Gama, então funcionário da Amages, os quais mantinham contato direto com o empresário Eudes Cecato e com os advogados que representavam a empresa favorecida", destaca o Ministério Público do Estado no pedido de abertura de inquérito enviado ao TJES.
Abaixo, seguem os principais trechos dos diálogos disponíveis no documento. Assim como as conversas, os textos que antecedem as mensagens foram reproduzidos na íntegra, conforme constam no requerimento do MPES.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Mensagens trocadas entre Hilário Frasson e Alexandre Farina, nos dias 13/02/20 17 e 15/02/2017, revelam que as negociações sobre a venda da decisão judicial, proferida em 03/03/2017 pelo magistrado Carlos Alexandre Gutmann, iniciaram em fevereiro de 2017. No dia 15/02/20 17, às 9h30, Hilário Frasson e Alexandre Farina se encontraram no prédio onde reside o magistrado. Ocasião na qual efetuaram ligação para o advogado Luiz Alberto Lima Martins. No mesmo dia (15/02/2017), à tarde, Hilário Frasson encaminhou mensagem para o magistrado Alexandre Farina informando que o advogado Luiz Alberto esteve no Fórum "despachando" e que "deixou o documento com o de Felipe".
TRECHO NARRADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Imediatamente, Alexandre Farina repreende Hilário Frasson, respondendo que o documento foi entregue para pessoa errada, que não deveria ter sido entregue para "de" Felipe, mas sim, para o magistrado Carlos Alexandre Gutmann – referido na conversa pelo apelido "alemão" –, e que Hilário deveria ter lhe avisado a hora que o advogado chegou ao Fórum.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Hilário Frasson, então, responde ao magistrado informando que ligou para o advogado Luiz orientando que retornasse ao Fórum e pegasse o documento de volta.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Poucos minutos depois, Hilário Frasson informa a Alexandre Farina que o advogado Luiz não mais iria retornar ao Fórum naquele dia, somente no dia seguinte, o que deixou o magistrado Alexandre Farina insatisfeito, conforme as mensagens que passou a encaminhar para Hilário Frasson, inclusive ressaltando que quem resolveria a causa mais uma vez teria lhe afirmado (a Alexandre Farina) que era só fazer chegar às suas mãos que resolveria. Abaixo as mensagens enviadas pelo magistrado Alexandre Farina para Hilário Frasson, após ser informado de que o advogado não mais iria retornar ao Fórum no dia 15/02/2017.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No dia 20/02/20 17 Hilário Frasson e Alexandre Farina voltaram a trocar mensagens, que indicam que Alexandre Farina esteve no gabinete do magistrado Carlos Alexandre Gutmann para tratar sobre o processo em questão, em reunião da qual também participou uma assessora do magistrado Carlos Alexandre Gutmann.
Na ocasião, a assessora teria informado aos magistrados que foi procurada pelo advogado "Marquinho Vicente" para tratar sobre o processo, o que causou preocupação em Alexandre Farina, conforme mensagens que enviou para Hilário Frasson no mesmo dia, se referindo ao magistrado Carlos Alexandre, desta vez, pelo sobrenome Gutmann.
No dia 2 1/02/2017, Hilário Frasson conversou com Eudes Cecato através de chamada de voz e, em seguida, reportou o fato por mensagem de texto para Alexandre Farina, e marcam de se encontrar no dia seguinte (22/02/207 1) na Padaria Expressa, no bairro Praia do Canto, em Vitória, às 8h. De fato, antenas Estações Rádio Base demonstram que Alexandre Farina e Hilário Frasson se encontraram no dia 22/02/2017 e, durante o tempo em que estiveram juntos (de 08h03m59s a 09h23m34s), realizaram duas chamadas de voz para Eudes Cecato, através do telefone de Hilário Frasson.
Ainda no mesmo dia, à noite, Alexandre Farina trocou mensagens com Hilário Frasson tratando da antecipação da prolação da decisão judicial e do pagamento que seria feito por Eudes Cecato, fazendo referência à palavra "vaca" em substituição a dinheiro.
No dia 23/02/2017, Hilário Frasson mandou mensagem de texto para Davi Ferreira da Gama cobrando explicações, uma vez que Alexandre Farina lhe telefonou preocupado porque Davi Ferreira teria dito a Alexandre Farina que Eudes Cecato não cumpriria a "obrigação".
Nesse mesmo dia, o magistrado Alexandre Farina Lopes encaminhou mensagens para Hilário Frasson demonstrando preocupação em não receber a vantagem indevida, uma vez que Davi teria ido até o aeroporto de Vitória encontrar com o empresário Eudes Cecato, tendo este dito a Davi Ferreira que não iria pagar. O magistrado Alexandre Farina disse para Hilário Frasson que ele e a terceira pessoa, que também receberia a vantagem indevida, já haviam assumido compromissos financeiros.
Hilário Frasson tenta acalmar o magistrado afirmando que Eudes Cecato "nunca falhou", e que lhe entregaria a quantia que ele (Hilário) repassaria para Alexandre Farina.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Fica explícito nesse diálogo que Hilário Frasson usualmente intemediava "negócios" para o empresário Eudes Cecato.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Ainda no dia 23/02/2017, Hilário Frasson disse para Alexandre Farina dormir tranquilo ("Dorme tranquilo") porque o empresário retornaria na sexta-feira de Salvador e ligaria para Eudes Cecato na sua presença. No entanto, o magistrado continua a demonstrar muita preocupação, dizendo que não poderia dormir tranquilo e solicitou a Hilário Frasson que desse um jeito de fazer contato imediatamente com Eudes Cecato, sugerindo, inclusive, que o fizesse através do aplicativo Whatsapp da esposa do empresário, que supostamente viajava com o mesmo, como forma de preservar o sigilo/ocultar a conversa que Hilário Frasson manteria com o empresário. Os dois interlocutores combinam encontro no mesmo dia após às 21 horas, aparentemente motivado pela preocupação de Alexandre Farina em não receber a vantagem indevida.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Ainda no mesmo dia Hilário Frasson efetuou ligação para Eudes Cecato e, logo após, continuou o diálogo com Alexandre Farina. Nessas mensagens o magistrado perguntou como foi a conversa com Eudes Cecato e cobrou de Hilário Frasson uma posição do empresário sobre a data que receberia o "dinheiro", inclusive para que informasse ao terceiro que também estava aguardando o pagamento. No mesmo diálogo o magistrado falou sobre a importância de ter sua identidade preservada, conforme o combinado.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Às 18h23min21s do mesmo dia Alexandre Farina avisou a Hilário Frasson que não mais poderiam se encontrar, pois teria que levar a esposa em Vila Velha. Remarcaram o encontro para o dia seguinte (24/02/20 17) às 08:00 horas no prédio do magistrado, tendo este reforçado sua preocupação em receber a vantagem indevida, afirmando que teria que dobrar a dose do remédio olcadil que estava tomando, de tanto desespero.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
De fato, conforme mensagens trocadas entre Hilário Frasson e Alexandre Farina na manhã do dia 24/02/2017, os dois se encontraram e Hilário Frasson efetuou ligação para Eudes Cecato. Poucos minutos após o encontro Alexandre Farina encaminhou mensagem para Hilário Frasson, mais uma vez preocupado com a preservação de seu nome, sobretudo porque o empresário Eudes Cecato manifestou o desejo de falar diretamente com ele. Na mesma mensagem afirmou que "o pior" foi Eudes Cecato ter dito à Davi que não iria pagar, uma vez que mais duas pessoas estariam "trabalhando nisso".
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Prossegue Alexandre Farina afirmando que estava tudo certo para que a decisão fosse prolatada na quinta-feira, dia 01 /03/2017, após a quarta-feira de cinzas, e que Eudes Cecato deveria observar regras "de preservação do silêncio e informações", já que Hilário Frasson havia lhe dito que Eudes Cecato, "vendedor das vacas", "é maçom antigo".
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Na quinta-feira, 02/03/2017, os diálogos entre Alexandre Farina e Hilário Frasson foram retomados e o magistrado informou para Hilário, às 15h40min58s, que a matéria estava sendo "analisada de forma detida", ''fazendo a quatro mãos". No mesmo diálogo advertiu Hilário Frasson de que saindo a decisão imediatamente deveria ser efetuado o pagamento.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No dia seguinte, 03/03/2017, às 10:35:40hs, Alexandre Farina avisou a Hilário Frasson que a sentença seria prolatada naquele dia, no fim do expediente, pelo que havia conversado, e pergunta pelo pagamento, dessa vez utilizando a palavra "rebanho".
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No dia seguinte, 04/03/2017, Hilário Frasson encaminhou mensagem para o advogado Luiz Alberto, informando que a sentença havia sido disponibilizada. Nos dias seguintes as mensagens entre o magistrado Alexandre Farina e Hilário Frasson prosseguiram, sempre no contexto da cobrança da contraprestação prometida pelo empresário Eudes Cecato ao magistrado Alexandre Farina e a terceiro.
No dia 10/03/2017, Hilário Frasson informou Alexandre Farina de que Eudes Cecato adiaria o pagamento para data posterior ao registro imobiliário, condicionando o pagamento ao cumprimento da sentença. Alexandre Farina, então, respondeu afirmando que isso não foi o pactuado, que queria encontrar Hilário Frasson pessoalmente, e que o terceiro estaria lhe cobrando, conforme mensagem que recebeu e encaminhou para Hilário.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
As mensagens tratando sobre o recebimento da vantagem indevida continuaram sendo trocadas entre o magistrado e Hilário Frasson e, conforme mensagem encaminhada por Alexandre Farina para Hilário Frasson no dia 20/03/2017, o pagamento seria realizado no dia 30/03/2017.
ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No dia 21/03/2017, o magistrado encaminhou mensagens para Hilário Frasson solicitando que este fizesse contato com Eudes Cecato para pedir que o pagamento fosse adiantado do dia 30/03/2017 para o dia 23/03/2017 e, também, para que Hilário Frasson visse as "outras coisas" e depois lhe falasse.
A defesa do juiz Alexandre Farina afirmou, por nota, que foi surpreendida com a decisão do julgamento do Tribunal de Justiça e reforçou "o juiz continua à disposição da Justiça capixaba".
"A decisão do tribunal pleno foi uma surpresa para todos nós, tendo em vista que o inquérito visa apurar fatos de 2017 e que, portanto, não possuem contemporaneidade para uma medida tão drástica como uma cautelar penal. De toda sorte, como ainda não foi nos dado acesso e nem intimados, não temos condições de analisa lá de forma mais acurada, mas assim que uma coisa ou outra acontecer iremos tomas as medidas necessárias. O juiz Alexandre farina Lopes continua a disposição da justiça capixaba, da mesma forma como sempre se portou nesses mais de 18 anos dedicados a magistratura, ou seja, com todo respeito necessário ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo", diz a nota assinada pelos advogados Rafael Lima, Larah Brahim, Mariah Sartório, Kakay, Roberta Castro Marcelo Turbay, Liliane Carvalho, Álvaro Campos e Ananda França.
Já a defesa do juiz Carlos Alexandre Gutmann, advogado Raphael Câmara, disse, por nota, que "não existe qualquer mensagem enviada ou recebida pelo Dr. Gutmann em toda investigação. A defesa reitera que o magistrado é inocente e que esclarecerá a verdade rapidamente".
O advogado de Hilário Frasson no caso Milena Gottardi, Leonardo Gagno, afirma que o ex-policial não foi notificado a respeito de uma suposta participação na venda de sentença, como aponta o MPES. Hilário ainda não tomou conhecimento das acusações.
A defesa de Eudes Cecato disse que desde que o empresário ficou ciente dos fatos investigados prontamente acatou todas as demandas indicadas e se colocou à disposição para colaborar com as investigações. "Sendo assim, registra seu mais alto interesse em contribuir para o esclarecimento de todos os fatos, de maneira que a Justiça seja feita", escreveram os advogados Fernando Ottoni e Clécio Lemos em nota enviada à reportagem.
A defesa de Davi Ferreira da Gama disse que ele "irá prestar as informações pertinentes nos próprios autos do processo em trâmite".
O advogado Luiz Alberto Lima Martins, também em nota, disse que está à disposição da justiça e acredita, que toda a verdade será esclarecida. Explica que nesse momento não pode se manifestar sobre os fatos do inquérito em razão do segredo de justiça.
Por meio de nota, a Amages informou que não tinha conhecimento dos fatos e que os juízes Alexandre Farina e Carlos Gutmann pediram afastamento da diretoria da Associação. Farina ocupava a função de 1º vice-presidente de Direitos Humanos da entidade.
"A Associação dos Magistrados do Espírito Santo (Amages) esclarece, através de sua assessoria de imprensa, que não tinha qualquer informação sobre o processo, que somente hoje teve seu sigilo levantado . Informa que os juízes de Direito mencionados pediram afastamento da diretoria, até total esclarecimento dos fatos, e a Amages, enquanto entidade associativa, como é praxe, dará o apoio necessário a defesa dos seus associados. Reforça que a Amages não é parte investigada e confia nas instituições e no respeito aos princípios constitucionais."
Em dois trechos reproduzidos pela reportagem da "representação pela instauração de inquérito judicial", enviada pelo Ministério Público ao Tribunal de Justiça, havia menção ao ano de 2021. Após a publicação deste texto, o MPES informou que houve erro de digitação de quem produziu o documento. O ano correto em que foi proferida a sentença suspeita e também em que o juiz encaminhou mensagens para Hilário Frasson solicitando contato com Eudes Cecato é 2017. O texto foi corrigido.
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