Completando sete anos de existência neste sábado (1º), a Lei Anticorrupção já garantiu a punição de 46 empresas pela prática de atos contra a administração pública no âmbito do governo do Espírito Santo. Isso em um universo de 133 empresas processadas, representando 34,5%. Elas responderam a 75 Processos Administrativos de Responsabilização, que em alguns casos envolvem mais de uma empresa, por condutas como fraude a licitação, com o uso de documentos falsos, fraudes contratuais, com a entrega de produtos falsificados, e o oferecimento de propina a servidores, por exemplo.
Publicada em 2013, a Lei Anticorrupção passou a valer seis meses depois, já em 2014, e foi regulamentada pelo Estado no final daquele ano. O primeiro processo administrativo contra uma empresa foi instaurado em junho, e em 2016 houve a primeira condenação, sendo o Espírito Santo o primeiro do país a aplicar uma punição com base nesta legislação. Além dos processos formalizados, foram abertas investigações preliminares em desfavor de 155 empresas.
Mesmo após tanto tempo em vigor, segundo especialistas, nem todos os Estados e, principalmente, municípios estão prontos para implantar os processos. Muitos deles ainda nem sequer fizeram a regulamentação e, por isso, ainda não conseguem identificar, processar e aplicar as penalidades, que podem ser uma multa de 0,1% a 20% do faturamento anual bruto e até o fechamento da empresa.
A Lei Anticorrupção prevê a responsabilização, no âmbito civil e administrativo, de empresas que praticam atos lesivos contra a administração pública. Ela supriu uma lacuna até então existente no ordenamento jurídico brasileiro, ao versar diretamente sobre a conduta das empresas corruptoras, ou seja, passando a punir a corrupção privada, e não só as situações envolvendo agentes públicos.
Desta forma, ao praticarem irregularidades em contratações ou licitações com o poder público, além de estarem sujeitas a responder na Justiça, em ações de improbidade administrativa ou ações criminais por corrupção, as empresas passaram a poder ser punidas também pela própria administração federal, estadual ou municipal , que seria a vítima do ilícito.
Desde a primeira condenação, em 2016, já foram aplicados R$ 11 milhões em multas no Espírito Santo, sendo R$ 4,4 milhões em casos que já transitaram em julgado, ou seja, decisões das quais não se pode recorrer, e R$ 6,5 milhões em processos que ainda cabem recursos. Além disso, 16 empresas receberam penalidades de suspensão do direito de participar de compras públicas por prazos determinados e, em alguns casos, também houve a penalidade de impedimento ou suspensão de licitar e contratar com a administração pública.
A maior multa já aplicada no Estado foi de R$ 4,1 milhões, a uma empresa que fraudou dois contratos administrativos firmados com a Secretaria de Ciência e Tecnologia para a construção de duas escolas técnicas nos municípios de Iúna e Viana. Neste caso, a empresa falsificou as medições de execução física das obras para receber pagamentos por serviços que não haviam sido efetivamente realizados ou que não estavam previstos no contrato, gerando um prejuízo de R$ 5 milhões. Este caso ainda não transitou em julgado.
Dos R$ 11 milhões em multas, R$ 3,04 milhões já foram efetivamente pagos pelas empresas ao Fundo Estadual de Combate à Corrupção, de acordo com a Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont). Esses recursos podem ser aplicados em ações de controle, transparência, ouvidoria, correição e combate à corrupção, como ações de capacitação em auditoria e aquisição de equipamentos. As empresas que não realizam o pagamento da multa aplicada são inscritas em dívida ativa.
O número de processos abertos pela Secont ao longo dos últimos seis anos foi avançando, e chegou a 20, somente em 2019, investigando 37 empresas. Em 2020, já foram iniciados 5 processos, mas em razão da pandemia desde 22 de março todos os processos ficaram suspensos. Isso implicou na paralisação de todas as atividades relacionadas a eles, desde a instauração de novos casos até os julgamentos. As investigações feitas pelos auditores, contudo, estão prosseguindo, de acordo com a pasta.
Doutor em Direito com pesquisa sobre "Integridade Governamental e Empresarial" e diretor executivo de Governança e Conformidade da Petrobras, Marcelo Zenkner considera que alguns entes públicos ainda enfrentam dificuldades para processar empresas que cometem ilícitos, principalmente em razão da falta de estrutura, de recursos e de pessoal especializado.
"A norma prevê que cada município e cada estado da Federação deve regulamentar e aplicar a lei anticorrupção, mas, para isso, há a necessidade, em primeiro lugar, de vontade política, que nem sempre existe. Além disso, é necessário investimento em treinamento para que os auditores públicos se especializem no tema e possam, assim, prestar o serviço com a qualidade que se espera", comenta.
Ele avalia o resultado já obtido pelo Estado como positivo, visto que atualmente, em relação ao número de sanções aplicadas, o Espírito Santo só fica atrás de São Paulo, Estado com população dez vezes maior. Zenkner foi secretário de Controle e Transparência do Estado em 2015 e 2016.
No âmbito empresarial também já são observados benefícios gerados pela lei. Após a comprovação do envolvimento em um dos maiores esquemas de pagamento de propina já vistos no mundo, organizações como a Petrobras, a Odebrecht Construções e outras, sobretudo aquelas que têm ações negociadas em Bolsa, são exemplos de empresas que têm buscado consolidar sua regras de governança e compliance para mudar a reputação.
A tomada de decisões colegiadas, composição do conselho administrativo com membros independentes, aprimoramento do código de ética, treinamentos de boas práticas e análise dos candidatos a cargos administrativos e membros do conselho são algumas das ações implantadas.
O secretário de Estado de Controle e Transparência, Edmar Camata, pontuou que o Espírito Santo já demonstra maturidade na aplicação da Lei Anticorrupção, tanto pela quantidade de processos abertos e punições aplicadas, quanto pela qualidade, pois poucos processos são revistos, trazendo segurança jurídica.
Agora, o próximo passo é passar a realizar acordos de leniência com as empresas, instrumento que ainda não foi utilizado em nenhum processo estadual. Eles funcionam como uma espécie de "delação premiada" para as empresas que decidem colaborar com as investigações em troca de uma diminuição e até anulação de suas penas ou sanções.
"O acordo de leniência é para as situações em que a empresa acredita que será punida, e se junta à investigação trazendo fatos, provas, favorecendo uma ação mais rápida. Ele só acontece onde a Lei Anticorrupção é bem aplicada. Para que processos, que duram 1 ou 2 anos, possam ser mais rápidos. Os acordos poderão ter pagamento antecipado de multas, compromisso da empresa de estabelecer programas, entre outras medidas", disse.
A regulamentação da Lei Anticorrupção já foi feita por diversos municípios do Espírito Santo, inclusive pelas maiores cidades, as da Grande Vitória (Vitória, Cariacica, Serra e Vila Velha).
Em Vitória, já houve 4 empresas punidas em processos administrativos, e em Cariacica, 2. O município de Vila Velha não deu retorno.
Na Serra, de acordo com a controladora municipal, Magaly Nunes, ainda não houve condenação nesta modalidade, mas já foram feitos 33 procedimentos de investigação preliminar, e que, por meio deles, 4 empresas já foram punidas com multa, e 9 impedidas de licitar. Houve 2 casos, ainda, que se tornaram objeto de tomada de contas especial no Tribunal de Contas do Estado (TCES).
Para Zenkner, no âmbito municipal é onde são esperados os melhores resultados da lei, mas ainda é necessário um fortalecimento do controle interno municipal, que ainda é bastante deficiente. "Se os administradores públicos enxergarem esse tipo de entrega como um investimento, e não como uma despesa, certamente estaríamos diante de uma política pública que contribuiria para uma melhor qualidade de vida da população, pois serviços de melhor qualidade seriam contratados com menores preços", comenta.
Nos municípios, principalmente nos menores, é mais comum que algumas contratações passem pelo chefe do Executivo, ao contrário das esferas estadual e federal. Os especialistas destacam, contudo, que isso não deve influenciar a aplicação da Lei Anticorrupção.
"Não basta que o município crie o decreto regulamentando a lei. É necessário que também instale um órgão para aplicá-la, e esse órgão precisa ter autonomia para exercer suas funções. Para isso, é necessário que tenham servidores efetivos, em carreira estruturada", afirma o advogado e mestre em Direito, Ludgero Liberato.
Com sete anos de existência e cinco de aplicação, a Lei Anticorrupção ainda pode ser considerada um instrumento novo para a administração pública, segundo especialistas. Por esta razão, ainda há alguns pontos que precisam evoluir no meio público e no privado.
Uma das questões é a adoção de práticas de compliance também por empresas menores, que ainda enfrentam mais dificuldades, segundo Ludgero.
"As empresas menores possuem mais dificuldades para implementar sistemas de integridade, pois não faz sentido para suas respectivas estruturas contratar mais um empregado apenas para essa atividade. Também é mais comum que o dono da empresa esteja mais envolvido em todas as contratações", explica.
Neste caso, uma solução para esse segmento é contratar empresas de consultoria especializadas em implementar sistemas de integridade para micro, pequenas e médias empresas, sem a necessidade de qualquer contratação adicional de pessoal, alternativa que tem se mostrado eficaz.
A Lei Anticorrupção prevê também que a comissão processante deve concluir o processo em um período de 180 dias. No entanto, este prazo costuma ser prorrogado devido à complexidade dos casos. No Espírito Santo, há um processo de 2017 ainda sem decisão.
Para Ludgero, embora de fato o prazo dado pela lei seja na prática muito curto, Estado e municípios devem estar atentos para que os casos não corram o risco de prescrição. "É preciso que haja aperfeiçoamento dos setores, para que todos os ritos processuais sejam seguidos e depois as sanções não sejam suspensas ou invalidadas no Judiciário, por falhas procedimentais. Por isso, é preciso que tenham pessoal suficiente e mais tecnologia envolvida."
Para Zenker, outra falha existente é quanto à rigidez da responsabilização de empresas que tomaram precauções. "Se a própria empresa, valendo-se de seu próprio sistema de integridade, detectar a ocorrência de um ato de corrupção envolvendo um empregado seu e um agente público, ainda que tome todas as medidas necessárias, juntando as provas, afastando o empregado e comunicando as autoridades, ela não ficará totalmente isenta de responsabilidade. Ela ainda poderá ser condenada a pagar o valor correspondente a 1/3 da multa prevista, o que certamente representa um desestímulo de reporte às autoridades", disse.
Nos Estados Unidos, por exemplo, ocorrendo uma hipótese assemelhada, a empresa fica totalmente isenta de responsabilidade, o que estimula a adoção das providências cabíveis e favorece a descoberta de grandes esquemas de corrupção.
O especialista em combate à corrupção e doutorando em governança global Raphael Abad, considera que a lei pode ser considerada "severa", já que prevê até mesmo a "pena de morte" para uma empresa, que é a sua extinção compulsória. Por isso, ela fez com que muitas organizações mudassem suas práticas, temendo as sanções.
"A lei não tem só a intenção de punir quem faz coisa errada, como também tem a função de inibir que as pessoas façam a coisa errada. O arcabouço legislativo de combate à corrupção tem que ter várias frentes. Já havia as sanções do Código Penal, há a Lei de Improbidade, que pune o agente público e eventualmente o particular, a lei de Lavagem de dinheiro, e a Lei Anticorrupção supriu a lacuna que havia, punindo a empresa, e não só o agente público. Isso fez com que surgisse a figura do compliance, em que as empresas criaram um código interno de conduta. Por mais que alguns possam ter sido 'pro forma', já se gera uma cultura", explica.
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