A disseminação de discursos de ódio nas redes sociais, que há tempos é denunciada por usuários, ganhou recentemente uma nova proporção. Pequenas e grandes marcas decidiram realizar boicotes contra plataformas digitais e anunciaram a retirada de anúncios até que medidas de combate à desinformação e conteúdo discriminatório sejam tomadas. O principal alvo é o Facebook. Especialistas acreditam que o movimento vai chegar, ainda que de forma mais tímida, ao Brasil, mas ainda possuem dúvidas se trará mudanças efetivas na política das redes.
O boicote começou nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd por um policial branco. Paralelo aos protestos que se espalharam pelo país, organizações não-governamentais lançaram a campanha "Stop Hate for Profit", em português Pare o ódio pelo lucro, pressionando marcas a suspender pagamento de anúncios no Facebook. A rede é acusada de permitir a veiculação de publicações racistas e não adotar medidas que coíbam a violência.
A adesão de grandes empresas à campanha, como Unilever e Coca-Cola, fez as plataformas digitais se mexerem. No dia 26 de junho, o co-fundador e diretor executivo do Facebook, Mark Zuckemberg, anunciou alterações na política de controle de conteúdo da rede, como endurecimento de regras e não tolerância a conteúdos de ódio e desinformação. Uma das medidas adotadas será a utilização de uma etiqueta para marcar postagens políticas que violam regras da plataforma, mas são consideradas úteis.
Em outras redes, como o Twitter, isso já é feito. Recentemente, posts do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foram sinalizados para que usuários verificassem a veracidade da informação. A rede também excluiu postagens de Jair Bolsonaro (sem partido) por violação de regras.
O posicionamento do Facebook, contudo, não foi suficiente para parar o movimento. Pelo contrário, mais de 600 empresas já aderiram ao boicote, ampliando a suspensão de publicidade para outras plataformas como Instagram- que também pertence a Zuckemberg- e Twitter.
Apesar de a grande maioria das marcas ter restringido o boicote apenas ao mercado americano, algumas já ampliaram para outros países, incluindo o Brasil, como é o caso da Coca-Cola, Volkswagen e Pepsico.
"O Grupo Volkswagen apoia uma interação aberta com base na igualdade. Um ambiente de notícias falsas ou discurso de ódio é, portanto, inaceitável para a empresa. Com isso em mente, o Grupo Volkswagen e suas marcas estão suspendendo anúncios no Facebook, incluindo a região da América Latina. Discursos de ódio, comentários discriminatórios e postagens que contenham informações falsas perigosas não devem ser publicados sem comentários e devem ter consequências", disse a Volkswagen por meio de nota.
Marcas brasileiras, contudo, ainda não se posicionaram sobre a campanha. Para Souza, o movimento deve chegar mais tímido ao país.
Olhando o comportamento do Brasil em relação a outros movimentos sociais, acho que o boicote deve ter adesão principalmente de marcas já conhecidas por adotar uma postura de militância e não querem ter sua imagem associada a discursos de ódio e desinformação. E isso costuma ser visto com bons olhos, até porque esse debate tem crescido no país, principalmente com a polêmica das 'fake news'. Não devemos ter uma campanha com a mesma força aqui, mas nos acende um alerta e estimula a discussão, comentou.
Ao mesmo tempo que as plataformas digitais democratizaram o acesso à informação, elas também se revelaram grande palco de discursos odiosos e desinformação. Principalmente em períodos eleitorais, e recentemente durante a pandemia do novo coronavírus, as redes sociais são um terreno fértil para publicação e disseminação de conteúdos enganosos e falsos, usados para manipular pessoas e incitar crimes.
Para a especialista em Direito Digital, Patrícia Peck, as mídias sociais precisam se reinventar. O modelo atual, segundo a advogada, é ineficiente, pois além de não ser transparente, ignora os problemas que existem.
De acordo com a coordenadora de pesquisa do InternetLab, Natália Néris, a revisão de políticas e moderação de conteúdo já vem acontecendo nas redes sociais há algum tempo. A inteligência artificial, contudo, funciona bem para banir publicações que contém nudez e pornografia infantil, mas o mesmo não acontece nos casos de discursos de ódio, que é a principal reivindicação dos grupos civis.
A remoção automática de publicações, da forma que é feita atualmente, não funciona para discurso de ódio, porque é algo que tem a ver com o contexto, do uso de palavras que podem ser consideradas desrespeitosas para uma determinada comunidade, mas para outras não. E essa análise de contexto é muito difícil de ser feita em uma rede social, do jeito que elas estão estruturadas, pontua.
Para o especialista em marketing digital, Michel Lent, não há dúvidas que as plataformas podem fazer mais do que têm feito atualmente. "É preciso cobrar um posicionamento mais rigoroso delas no combate de conteúdos que disseminam ódio e informações falsas. Esse movimento é legítimo". Ele pontua, contudo, que muitas mudanças na política dessas empresas não são tão simples de serem feitas.
Do ponto de vista financeiro, o impacto do boicote não deve ser tão grande. Logo que os primeiros cortes de anúncios foram anunciados pelas empresas, o Facebook viu suas ações na bolsa caírem em cerca de 8%, mas na semana seguinte o valor perdido já havia sido recuperado. Segundo Lent, apesar da maior receita do Facebook estar na venda de publicidade, ela é sustentada por pequenas e médias empresas.
O próprio Zuckemberg já mostrou que não está tão preocupado com os números e que os anunciantes vão voltar à plataforma. Nos últimos dias, ele declarou que os boicotes não apresentam impacto significativo na receita e que não vai ceder a pressões para mudar o enfoque ou políticas da empresa.
Por mais que não se espere um grande impacto financeiro, a representatividade do movimento é grande e tem mostrado uma preocupação da sociedade civil em torno da desinformação e do combate ao discurso de ódio. Para Souza, quem mais tem a perder é o Facebook.
Ainda é cedo para dizer se esse movimento vai durar muito tempo ou não e os impactos que vai trazer, mas temos visto marcas com grande influência de mercado aderindo ao boicote, e isso, de certa forma, estimula outra marcas menores a aderir também, o que poder gerar um grande problema para o Facebook. Há também o fato que as marcas são hoje cobradas por isso e quem não se posicionar pode ser mal visto, afirma Souza.
Por meio de nota, o Facebook e o Instagram informaram, de forma conjunta, que têm investido em medidas para atualizar as políticas da rede e combatido discursos de ódio.
"Investimos bilhões de dólares todos os anos para manter nossa comunidade segura e trabalhamos continuamente com especialistas da sociedade civil para revisar e atualizar nossas políticas. Nos abrimos para uma auditoria de direitos civis e banimos 250 organizações supremacistas brancas do Facebook e Instagram. Os investimentos que fizemos em Inteligência Artificial nos possibilitam encontrar quase 90% do discurso de ódio proativamente, agindo sobre eles antes que um usuário nos denuncie, e um relatório recente da União Europeia apontou que o Facebook analisou mais denúncias de discurso de ódio em 24 horas do que o Twitter e o YouTube. Temos mais trabalho para fazer e continuaremos trabalhando com grupos de direitos civis, GARM (Global Alliance for Responsible Media) e outros especialistas para desenvolver ainda mais ferramentas, tecnologias e políticas para continuar essa luta".
Já o Twitter disse que tem desenvolvido "políticas e funcionalidades na plataforma no intuito de proteger a conversa pública e, como sempre, estamos comprometidos em amplificar vozes de comunidades sub-representadas e grupos marginalizados."
"Temos regras que determinam os conteúdos e comportamentos permitidos na plataforma, incluindo, por exemplo, a política contra propagação de ódio. Nossas regras estão em constante evolução para atender às novas demandas e necessidades de um ambiente em constante transformação, e temos inclusive contado com o feedback das pessoas e colaboração de especialistas terceiros em sua elaboração e atualização", disse em nota.
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